terça-feira, maio 1

SOBRE DETERMINADAS IDENTIFICAÇÕES - Crítica à peça Pão com Ovo


      


Segundo a teoria da recepção, a aceitação de uma obra vem em decorrência da identificação do público com a mesma. Essa proximidade entre a arte e o público deve-se, em parte, aos aspectos que estão incutidos na sociedade e que o livro, a pintura e, no caso em questão, a peça, conseguem revelar. Eis o que Aristóteles chamava de catarse: o limite, ainda impreciso, em que a abstração da vida encontra a abstração da arte. Tendo base nisso, um processo catártico vem ocorrendo na ilha de São Luís. Uma leva de gente começa adentrar os teatros. Carros e pipoqueiros se acotovelam nas portas das casas de espetáculos. Tudo para ver a peça que está na crista da onda: Pão com Ovo.



Um processo inédito na Ilha de São Luís, ilha do reggae, e não do teatro. Fenômeno talvez só visto nas apresentações de Uma Linda quase Mulher. No entanto, à diferença desta última, a Pão com Ovo, conseguiu criar uma estardalhaço ainda maior. O apelativo foi o quotidiano do ludovicense. Não só os dizeres, mas a realidade do cidadão maranhense, socado em ônibus lotados, refém das burocracias das repartições públicas, talhados pelo conformismo e, ao mesmo tempo, ávidos por uma ascensão social, uma mudança de vida, uma promoção de status que sai do âmbito individual, e atinge a cidade como todo: São Luís como uma capital digna de ser chamada de capital, uma São Luís que experimenta os sintomas do crescimento urbano que vão dos engarrafamentos quilométricos aos sequestros relâmpagos.


Todo esse novo frisson é retratado pelas duas personagens Dijé e Clarisse. Representantes legítimas desse crescimento que nasce ainda ligado à placenta do provincianismo. A primeira, uma mulher pobre, moradora do Fumacê, mãe de cinco de filhos, a segunda, funcionária concursada, habitante do Renascença II. A situação de cada uma pode ser diferente, mas a realidade é a mesma para todas. Elas estão unidas por portarem mesmo testemunho sobre a cidade. Elas expressam São Luís como um todo. Jogam com as duas perspectivas da sociedade: o rico (ou o desejoso de sê-lo) e opobre (conformado com o pouco que tem).


O sucesso da peça deve-se, sem sombra de dúvida, a essa proximidade entre os personagens e o ludovicense contemporâneo. A encenação não se contorce em aspectos teóricos, não se afoga em pressupostos estéticos. É simples. Ela joga claro com espectador. Assina, desde o primeiro momento, logo quando a locução inicial diz serem permitidos fotos e filmagens, um contrato de poucas e simples cláusulas com público. Faz com este não entre só na história, mas faça parte da cena. O entendimento da peça se une perfeitamente com identificação. Não há distanciamentos. Estamos livres dos Brechts, Artauds, Boals. Estamos ali, justamente, para nos deleitamos com os efeitos da catarse, esse gozo que consiste em ver nossas vontades, nossos desejos, nossas revoltas, sendo esgotados na boca dos personagens, essa purgação que, ao contrário da tragédia grega, se faz através do riso e se finda na aceitação da realidade, não a de Platão, mas aquela que nos é ficcionalmente imposta e que chamamos de dia-a-dia.


Apesar do desenrolar da trama, o que marca a peça é a imobilidade. Os personagens não se transformam. Não mudam as condições que lhe foram dadas para viver. Não há conflitos que movam a trama e a modifiquem. O jogo consiste num retrato descritivo. Uma volta em círculos em torno da situação em que vivemos. A vida que sai da rotina, vai ao teatro, e volta à rotina. O que muda? Os personagens voltam à posição inicial. O drama termina com a retomada da primeira cena: duas funcionárias públicas, onerando o serviço público, tratando mal o público (o trabalhador inválido de Zé Doca) e fazendo o público se lavar de rir.


Voltando à teoria da recepção, à questão da identificação do espectador com a obra de arte, o fato de as salas de teatro lotarem deve-se, sobretudo, a constatação de um quadro crônico de resignação, de uma transformação urbana que muda a cidade, mas visa deixar cada um em seu devido lugar, que dá aos ricos o quinhão extorquido e, aos pobres, um motivo para viver feliz, para rir de tudo, apesar de tudo. Pão com ovo é, antes de ser comédia, o adjetivo que complementa o misterioso sentido de ser “ludovicense”.

REFERÊNCIAS


BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. 4ªed – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;
SINISTERRA, José Sanchis. Dramaturgia da Recepção. Revista Folhetim. Abril-junho de 2002
BORNHEIN, Gerd. A questão da Crítica. Revista Folhetim. Outubro-dezembro de 2002.

4 comentários:

Anônimo disse...

A foto ficou na frente do texto

Anônimo disse...

Pão com Ovo é interessante porque consegue fazer o quase milagre de trazer a ralé para um dos solos sagrados da arte que se chama o teatro. E vai mais além porque consegue ganhar dinheiro com isso. Diferente de outras peças ludovicenses que o máximo que conseguem é conseguir alguns espasmos de uma turma dita pseudo-intelectual. Que muitas vezes não conseguem pagar nem sua entrada. " Pão com ovo e teatro ao povo".

Natan Castro.

Anônimo disse...

gostava quando tinha o nome das pessoas que escreviam aqui, fica muito perdido só apresentar textos mais lidos, se não me dão a oportunidade de escolher o que quero ler.

Anônimo disse...

ta lá embaixo o nome de todos em "cloud" senhor thompson.