sábado, junho 25

Um flâneur no Rio


Por Cris Lima
Era perambulando pela cidade que o flâneur tornava-se livre. Livre para compor seu leque de desejos. Era vagando pelas ruas dantes sem luz, que ele tentava enxergar por entres os paralelepípedos, pelo lixo, pelas vitrines a inspiração para a melancolia e o tédio que adornavam a vida moderna. “A rua se torna moradia para o flâneur que entre fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês.”(BENJAMIN, 2003 p. 35).
O flâneur que passeava, nos bulevares, “comum”, como todos, parecia misturar-se a multidão para dela extrair o que mais de frívolo existisse. Além de fazer sua observarão patológica do seres que habitavam as ruas, o flâneur almejava, também, buscar um certo distanciamento dos acontecimentos observados por ele.
O Rio de Janeiro do início do século XX ofereceu condições, por assim dizer, patológicas, para o surgimento desta figura que passeava de modo inteligente pelas ruas. João do Rio foi o nosso flâneur. Apesar do calor, da aparente mestiçagem da população do Brasil, tão diferente da cidade-modelo, Paris. A arte de flanar instaurava-se na capital da recente república brasileira. O olhar lançado por João do Rio à cidade era o mesmo de Baudelaire sobre sua Paris. Afinal, ambas, foram banhadas pela onda da Modernidade, da Velocidade, da Artificialidade.
O ato de vagar, ou melhor, de divagar pela cidade recém modernizada, fazia com que João do Rio encontrasse nos redutos mais longínquos, por entre becos, botequins, vielas, aqueles seres marginalizados pelo progresso, que nos salões da “Belle Époque“ carioca não cabiam. Contudo, em seus contos e crônicas, tipos como prostitutas, cafetões, ladrões, assassinos, jogadores, alcoólatras, suicidas, homossexuais tinham lugar privilegiado no teatro da realidade da cidade moderna. Era nas ruas cariocas que nosso flâneur defrontava-se como os homens mecanizados pelo progresso dos seus automóveis a enfeitarem, com fumaça a paisagem urbana do início do século XX. “O automóvel é o símbolo do novo tempo, avassalador e vertiginoso, trazendo consigo alterações radicais na fisionomia urbana”. (RODRIGUES. 2003, p.130)
Era através da distração de forma inteligente que o flâneur brasileiro captava para si a crônica da vida cotidiana. O sujeito passeava quase que vertiginosamente, sentia o tédio e a melancolia de ser envolto pela uniformidade que a modernidade trazia. Era congestionando-se pelas pessoas na Rua do Ouvidor, frequentando o Teatro Municipal que, João do Rio desenhava as figuras mais excêntricas de seus contos, buscando assim, mostrar o que hoje parecemos viver a frivolidade da cidade moderna, o simulacro da vida urbana, o corre-corre em busca do capital, a crise de valores, a depressão, o sentimento de niilismo diante das coisas.
A urgência da vida parecia criar parasitas, vermes, tal como, já descrevia Kafka em seu livro A metamorfose. A degradação psicológica e física do homem moderno que se encontrava perdido em sua vida de consumo e que achava refúgio no suicídio.
A modernidade fazia da rua um labirinto de possibilidades ao “homem das multidões” perde-se ou encontra-se diante de uma vitrine, ou dentro de uma galeria, ou num café a contemplar por cima a vida miserável da metrópole burguesa.
Coube a João do Rio, nosso flâneur, descortinar a falsidade vivida pela sociedade carioca, desvendar a vida de aparência que importava tudo; gestos, falas, andares, costumes europeus. O mundo visto por João do Rio era a representação do riso falso da moça no bulevar a flertar com o janota de cartola, o cumprimento “cortês’’ do banqueiro, feliz por acertar mais um negócio.
O Rio de Janeiro no início do século apresentava ares de uma grande feira, onde tudo era possível de ser negociado, e o flâneur ávido por observação vislumbrava paciente, quase indolente, talvez inebriado pela fumaça dos automóveis a vida agitada da cidade.

REFERÊNCIAS:

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade.Org: Teixeira Coelho Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III: Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo. 3 ed. – São Paulo Editora brasiliense,2000.
CUNHA, Helena Parente. Melhores contos de João do Rio. São Paulo: Global, 2001.
BROCA, Brito. Naturalistas, Parnasianos e decadentistas: vida literária do Realismo ao Pré-Modernismo. Campinas, SP. Unicamp. 1991.

Noite de outubro


Chovia. Uma chuva fina, porém constante. Ela acordou no meio da noite com o barulho da chuva batendo na janela do quarto. Olhou para o lado. Ele não estava lá. Ele nunca mais estaria lá. Pensou em como a cama parecia grande e espaçosa sem ele. Em como as noites pareciam mais longas sem as conversas antes de irem dormir. Pensou que nunca mais ouviria a sua voz ou sentiria o seu cheiro. Nunca mais o abraçaria, o beijaria nem faria amor com ele. Nunca mais ririam das mesmas piadas e se divertiriam juntos ou brigariam sobre de quem é a vez de lavar a louça. Pensou que nunca mais o ouviria sentar-se ao piano e tocar Chopin. Ele morreu. Ele morreu e ela não pôde fazer nada para impedir que isso acontecesse. Sentiu raiva. Raiva dele. Por que ele saiu de casa mais cedo justamente naquele dia? Por que ele não saiu no horário de sempre. Ele não devia ter partido. Ele não podia ter partido. Ter partido sem ela. Como pôde tê-la deixado sozinha?
Um choro. Um choro agudo. Não. Ela não estava sozinha. Forçou-se a sair da cama e caminhou em direção ao berço. Afastou o mosquiteiro e pegou aquela pequena criaturinha nos braços. Aquele pequeno pedaço de gente. Pedaço dele. Dela. Deles. Sentou-se na cadeira de balanço e deu-lhe de mamar. Ela estava afoita sugava o leite de maneira aflita, quase desesperada. Era apressada como o pai. Gostaria que ele a tivesse conhecido, pensou. Ele seria extremamente ciumento, a protegeria de tudo e de todos. O pensamento a fez sorrir. Lembrou-se que a única coisa a qual a sua sanidade se ateve foi a esse pedacinho dele que ela carregava em seu ventre. Um fruto do amor de ambos.
Ela levou a mão ao pescoço e acariciou as alianças que levava penduradas ali. Sim, ele havia morrido, mas não estava morto. Pelo menos não completamente. Uma parte dele ainda vivia em cada canto daquela casa, em cada canto daquele quarto. Uma parte dele ainda vivia naquela doce menina que agora dormia em seus braços. Ele ainda vivia em seu coração e viveria ali para sempre. Lá ele nunca morreria.
Começou a embalar-se na cadeira e deixar as lágrimas cairem. Pegou o controle do som e apertou o play. Deixou que a música de Chopin invadisse e inundasse o quarto. Ele não havia conhecido a filha, mas a filha o conheceria. Ela garantiria isso.

Vanessa Soeiro Carneiro

Bailarina

Ontem ela esteve aqui, trouxe vinho antigo e ficou por horas deitada no chão, relatando suas andanças, reclamando de minhas mazelas, das coisas que escrevo e deixo amiúde pelo chão, sua preocupação me alimenta quando ela esta ausente. no meio da madrugada sua lembrança vacila na escuridão, é quando aceito o sono sem repulsa. Ela possui trejeitos de maldade, aquele olhar que ultrapassa as coisas, mas como já a conheço há tempos sei que não é por toda assim.
Muitas vezes discutimos sobre diversos assuntos, quando contrariada vem à tona aquele castelhano lá das terras da Andaluzia e depois se pôs a chorar ouvindo alguns fados e outras epifanias. Nunca a deixo perceber minha parcela de satisfação com suas visitas, nossas vidas se entrelaçam por conta do seu viés trágico, não escolhemos esse oficio, precisamos compartilhar a primazia desta condição.
Como de praxe cantamos a capela - A canção da mais alta torre - no abraço minha lágrima manchou sua fantasia de bailarina, porém ela sorriu dizendo ter mais um motivo para lembrar-se de mim, sempre que estiver bailando por ai. Antes costumava me visitar, durante o inverno, porém ontem o sol clareava os quatro cantos do quarto e também o dorso do meu corpo inteiro, para ela não sei por que tudo isso importa; verificar as plantas colocando-as ao sol, dobrar as camisetas naquela posição anterior, apalpar minha barba por fazer, lá pras tantas ela pediu que cantássemos outra canção, no meio da manhã dei a ela de presente o vigésimo nono girassol. Isso foi ontem, hoje tudo continua como ela deixou e por ela assim tudo deverá continuar.

Natan Castro.