sexta-feira, junho 3

Vida em uma Lauda - O Vinho

Encontraram-se casualmente em um bar, mas o destino tratou de apresentá-los em outra ocasião. Ambos resignados com a vida e fragilizados emocionalmente, cúmplices de amores falidos: ele vulnerável acorrentado em um amor dissolvido, ela desiludida, com a chave e o cadeado em mãos, presa a um amor desacreditado. Ambos “adulteceram” precocemente: tiveram a adolescência usurpada por responsabilidades. Cada um em sua bolha de sabão, imaculadamente, inabalável. Ledo engano. Ventos mudam a direção, bolhas rompem-se. Fora delas, ou se abandona o estado de latência ou se reinicia o ciclo vegetativo de viver. A frente de tudo isso, a decisão de cada um...como provar ou não aquele vinho.

A madrugada engolia a noite e já respirava o ar do amanhecer refrescando o sofrimento que se derramava sobre a mesa, como o suor escorrido das taças com vinho tinto abandonadas pelo calor da conversa que se desenrolava ali. Nos olhos dele angústia, nos dela, acalento. A conversa prosseguiu em caminho de formigas, um monólogo extenso até se perderam em olhares. O silêncio descarrilhou as formigas. O tempo parou. A vida parou. A respiração falhou. Só o pulsar do coração a trouxe de volta. Ela desviou o olhar, era possível ver a lua de sua taça. Imaginou se São Jorge a estivesse vendo... quem sabe a levaria dali antes que se apaixonasse novamente? São Jorge contra o amor, ou a ilusão, só queria ser protegida contra sofrimentos. Já nem sabia o que representava o amor. Levantou a taça, sentiu o leve aroma das uvas... pobres e deliciosas uvas, colhidas, amassadas, fermentadas e servidas em vinho. Pensou ser assim o viver, aprendemos com a vida depois que nos permitimos processar, mas diferentemente do vinho, não somos melhores à medida que envelhecemos, o amadurecimento é compreender que se deve colher o que a vida tem para nos oferecer e apreciar as parreiras, as uvas e o vinho. Pela primeira vez, sentia que abrira o cadeado de sua própria prisão.

O silêncio se estendera inquieto. Ele dobrava e redobrava a ponta do guardanapo abaixo da taça, totalmente encharcado, poderiam ser suas lágrimas, imaginou. Por que o amor acabara? Por quê? Examinou o resto do vinho que se refugiava no fundo da taça, era como os relacionamentos, não se evaporam totalmente, sempre ficava algo... Tudo lhe parecia mais lúcido:O fim é também recomeço, pensou levantando a taça ainda vazia. Pegou a garrafa naufragada no balde de gelo. Observou-a com delicadeza... perdeu-se no rubi de sua cor... que uva seria aquela? O sabor, o aroma, agora tudo lhe seduzia. Serviram-se de mais vinho.  

As taças se beijaram ao amanhecer.

Alice Nascimento

Foto Alice - Esmalte e vinho, tintos

Pink Moon

Escrevo A depois N e novamente a A em letras de forma numa folha branca preenchida quase todo o espaço de um papel A4 com uma caneta bic preta. Pego a tesoura e recorto as letras e daí percebo que seu nome ao contrário repete seu nome - coisa boba e infantil – talvez – mas difícil de acontecer.  Aconteceu que você apareceu com seus ombros arqueados e tímidos abrindo o portão do prédio, pois eu estava lá indefeso sem poder abri-lo com uma CPU escangalhada nos braços. Disse obrigado sorrindo e acho que você não respondeu nada e sumiu nos degraus.
Quem era você? Não ia responder, pois como disse já tinha sumido nos degraus numa farda verde colegial.

E do nada você apareceu  na praça dos amores perguntando se era o irmão de uma menina do nosso bloco meio nervosa e audaciosa - como se soubesse ou não temesse o que queria – e respondi:
Sou sim. Senta aí.

Você sentou de perfil e pouco olhava pra mim.
Estou te perturbando? Acha que me repetiu isso várias vezes.
Não, não  – Acho que também repeti varias vezes. Estava só aqui pensando.
?
Uma viagem.
Onde?
Pra um lugar cinzento e frio.
Hm.
Dois.

Agora não eram os ombros era o nariz - que soube depois que não gostava dele – você falava alguma coisa sobre você - matava aula de inglês – esperando amigos - e eu me perdia no seu nariz escorregando.

Qual o seu nome? Vamos caminhar?

Sim.

Baudelaire Edgar Alan Poe você disse alguns malditos e talvez outros tem alguma coisa no seu cabelo.
Posso tirar?
Sim.
Que ver o pôr do sol comigo? Sentar na grama.

Pode ser 

Ver o rio anil passar por baixo da ponte são Francisco e acabar na baia de são marcos com o sol se despedindo entre cores azuis vermelhas violetas e sei lá era mesmo coadjuvante ao seu lado. Acho que rimos. Acho que tocamos as pernas. Acho que alguém suspirou. Acho que o sol sumiu. Acho que logo você foi embora.
E depois percebi que sua anatomia foi aparecendo por partes - ombros tímidos nariz e agora eram os lábios desenhando uma linha sonsa um pouco monalisa e você voltava ou escapava das minhas perguntas num alto mecanismo particular de defesa assim se tornando quase impenetrável em sua bolha que eu insistia em espocar quando daquela vez te provoquei e disse sinceramente que traria uma muda pra você plantar no condomínio:

Talvez agora saia da bolha e cuide dela irrigando.

Ficaste com raiva subiu degraus pra dentro de seu apê e eu ainda disse “Brincadeira” tentando atenuar meu sarcasmo agressivo quase impossível de não se manifestar.
Voltei pro meu apê desiludido e você logo interfonou e talvez suspirou fundo:
Vamos banhar de piscina.

Agora?
Sim
Eu te espero lá em baixo.
Certo.

E você agora não era uma adolescente sensível, mas uma mulher sentida e forte caímos na piscina azul de cloro naquela noite estrelada e começamos um ping pong filmes vida frases livros amor vida cor favorita eu quero ter um filho eu quero ir a paris eu quero explodir eu quero – e olhos nos olhos mãos nas mãos naquele baile girando em torno de nós mesmo numa sintonia pueril.
É hora de ir.
Não.
Sim.
Sim
Não.
Saímos da piscina tremendo de frio coitadinhos de deus.
Você não me dar um abraço de despedida?
Isso é um clichê.

Não é não! É um abraço apenas Ana.

Ficamos no portão calados onde outro dia eu estava indefeso e você tímida numa farda colegial, mas não era um déjà vu era real e abri o portão como um cavaleiro inglês. Você ficou estanque estranhamente me olhando.

Vamos. Entre.
Entre. Vamos.

Subimos e subimos você ia na frente pelos degraus e se virou e me abraçou - realmente não era um gesto clichê – plin - e quem sabe a bolha estourou por segundos.

diego pires

o título é uma referência a música homônina do lirico Nick Drake e também ao signo de câncer regido pela lua.

Um câncer que cura

quando Arthur foi ao salão, o cabeleireiro achou um nódulo estranho sob seu cabelo, após alguns exames um diagnóstico... em poucos semanas, após o início do tratamento seu cabelo cairia. os amigos da turma em solidariedade rasparam suas cabeças.. impregnaram-se de humanidade, e renascendo dentro de si mesmos sentiram pela primeira vez as cores, os risos, os cheiros, as formas, e a vida. naquele dia enquanto os cabelos caiam amarelos, compridos, secos, brilhosos, negros e claros, eles também se curavam.

Elizeu Cardoso