domingo, abril 7

Carta


A vida ficou nua na minha frente e eu sequer olhei. Meu olhar atravessou e atingiu outro lugar, ou lugar nenhum. Foi como olhar para uma parede branca. A vida atirou cores em mim. Colocou reflexos da luz do sol nos vidros das casas. Despejou folhas secas em calçadas. O vento se jogava no meu rosto, perfumado. Levantei a gola da camisa contra o frio e continuei andando de costas para o pôr do sol. Mastiguei as suas frutas e não senti gosto algum. Sentei-me no cordão da calçada e as pessoas se apressaram na minha frente. Ao mesmo tempo, não vi ninguém, muito menos fui visto. Achei melhor assim. Eu vi um cavalo em Turim às chicotadas e provavelmente não reagi - talvez até tenha ajudado a dar as chicotadas. Céus! Por um minuto (que talvez tenha durado 20 anos) tudo era irreal. Foi apenas luz. Sem matéria. Insípida. Luz, apenas. Eu não sei se você me entende, também não espero que entenda. Estou esquentando a água para um café preto. Se quiser, pode se sentar na sala e beber comigo. Mas te conheço a ponto de saber que não irá ficar. Se levantará e sairá pela porta. Entende? Acredito que não. Ainda ouço seu salto alto atravessando o corredor até o elevador. A chaleira com a água quente começa a ferver. Amanhã vai chover. Será um dia cinza. De emoções cinzas. Olho para a sacada e lembro que preciso regar a minha horta. Você não entende. Nunca irá entender. Eu só quero regar os meus pés de alface.