quinta-feira, setembro 15

ABoRReCenTES


DORALICE E JOÃO
JOÃO (contemplativo) - Esperei do lado de fora do consultório sentado numa praça em frente. Mães passeando com carrinho com bebês. Crianças brincando de pega-pega. Homens e mulheres fazendo Cooper. Casais passeando de mãos dadas. Velhos jogando milhos pros pombos. Nascer, crescer, multiplicar e morrer é o sentido da natureza. Tudo são passatempos dos homo sapiens para se distrair da vida. A única diferença entre nós e os animais ditos irracionais é a distração.
DORALICE (blasé) - Aquele Nerd maconheiro ainda ta aqui, será que ele esta me seguindo. Pode ser um psicopata que serra as cabeças das pessoas e joga na privada suja de bares machistas da periferia com aquela música tétrica.
JOÃO FOI EM DIREÇÃO A ELA PRÓXIMO A CALÇADA DO CONSULTÓRIO COMO SE DISTRAÍDO.
JOÃO (nervoso)- Ei...
DORALICE (fingindo surpresa) - Por que você ainda esta aqui? (Vira de ombro pra ele)
JOÃO (nervoso)- To esperando meu pai vim me buscar no carro. - Claro que menti. Queria ver aqueles olhos verdes em contraste com sua brancura.
DORALICE (curiosa e blasé)- Sei... O que o psicólogo falou com você?
JOÃO (menos nervoso) - Perguntou se eu usei maconha pra me aparecer diante dos amigos ou se foi por curiosidade?
DORALICE (blasé) - E o que você respondeu?
JOÃO(calmo) - Respondi que tinha lido uma matéria dos efeitos terapêuticos da canabis sativa na revista Mente e Cérebro e tinha me interessado.
DORALICE (surpresa) - Sério?!
JOÃO (rindo) - Mentira. Na verdade foi um amigo da escola que me ofereceu e aceitei.
DORALICE (rindo) - Ele perguntou só isso?
JOÃO (calmo) - Também perguntou sobre minha relação com meu Pai. Disse que meu pai parecia uma criança e eu tinha que fazer muitas coisas em casa; como esquentar a comida, falar com os cobradores, pagar as contas. E perguntou também sobre minha mãe.
DORALICE (mais curiosa)- E sua mãe?
JOÃO (calmo) - Disse que tinha saudades dela, mas não a odiava por ter traído meu pai.
DORALICE - Ela traiu seu pai?
JOÃO (nervoso) - Com outra mulher.
DORALICE - Como assim?
JOÃO (nervoso) - Minha mãe era artista plástica. Pintava mulheres nuas. Um dia num vernissage mamãe conheceu uma francesa.
DORALICE - Vernissage?
JOÃO (calmo) - É uma exposição.
DORALICE (blasé) - É que gosto de palavras novas. Que nunca li ou escutei. Era uma exposição de quê?
JOÃO - De quadros. Ela pintou a francesa no seu ateliê que ficava no fundo de casa.  Meu pai chegou em casa e pegou elas transando.
DORALICE (curiosa) - Que flagrante. E o que seu pai fez? Matou ela?
JOÃO - Matou ela?! Não, ela está viva.
DORALICE - É que você estava usando o verbo no passado e pensei...  O que ele fez então?
JOÃO - Chutou o quadro com a pintura das pernas abertas da francesa e não falou nada. Mamãe ainda brigou com ele dizendo que aquele quadro era uma obra prima. Na outro dia mamãe viajou para Paris com a sua musa. E você, como foi?
DORALICE - Não falei muita coisa. Não tava a fim de conversar. Falar dos meus conflitos. Sou uma bipolar ambulante.
JOÃO- Você vem na próxima consulta bipolar ambulante?
DORALICE - Acho que sim.
JOÃO - Quando vai ser?
DORALICE - Próxima quarta feira.
JOÃO (preocupado) - No mesmo dia da minha. A gente se vê. Promete que não vai se suicidar até lá?
DORALICE (riso cínico) - Não sei. Você é engraçado?
JOÃO - Isso é um elogio?
DORALICE - Acho que sim.
JOÃO - (Pensei que ia dar um beijo no rosto dela de despedida como as pessoas da nossa idade fazem normalmente. Mas ela pôs headphone e foi embora na minha direção oposta. Estranha e misteriosa. Pelo menos ela disse que eu era engraçado. Legal)