quarta-feira, julho 13

nuit blanche

Solilóquio



- 20:15

            A cidade está louca

- 23:00

Pra mim, parece que  dorme.

- 23:05

Mas, mesmo assim, louca. Mesmo que durma.

- 23:40

Mas está tudo tão calmo, as ruas estão vazias, e os semáforos mandam parar e seguir trânsito algum, como se fossem esquizofrênicos.

- 0:00

Esse silêncio, esse inferno que é a calma, esse vazio que é a madrugada...

- 0:20

E o que tanto te incomoda? Mesmo que a cidade esteja um caos, que fora da tranqüilidade desta rua habite a vida noturna dos bordeis, dos quartos de motéis, dos bares, do fogo, do trago e da fumaça...
A cidade está louca, é um fato, mas só nos resta essa paz incógnita, essa pequena paz que é simplesmente não pensar no caos, mesmo que este esteja a poucos passos, mesmo que no nosso silêncio mais vago permaneça bem distante o som de  uma musiquinha cafona.

- 1:15

Não sei... Eu tenho a impressão que se por estas ruas circulasse o ar da peste, e até se todos morressem, ou daqui fugissem, ainda existiria essa coisa que me agonia... é como se a cidade respirasse... como se por debaixo destes asfaltos corressem linfa e sangue... como se existisse algo por detrás de toda essa bagunça, no entanto, meu caro, eu sei que tudo isto é simplesmente nada, é só um rastro humano, um suor evaporando por todas as paredes, por todos os córregos, pelos fios dos postes, por tudo o que já fora tocado, estando ali, em tudo que couber nas tuas retinas, uma coisa infinitamente superior do que uma simples digital. Eu não entendo como todo um caos pode ter o cinismo de dormir, de fingir que dorme. Como, por que raios de razão, esta cidade finge dormir? Finge fechar as portas das lojas, as portas das repartições públicas, finge tentar, de alguma forma escrota, dizer que não está ali, dizer que as ruas estão vazias, que os motéis estão lotados, que as delegacias tentam inutilmente ficarem de plantão e que, em algum canto, uma família dorme tranqüila sob a vigília dos seus próprios insones?

- 2:22

Não sei você, mas às vezes eu rezo para que o mundo acabe, não por completo, mas apenas seja talhado, logrado o suficiente para se ter um novo começo, que uma onda gigante, um terremoto, um vulcão, sei lá, que o cocô de um pombo, o que quer quer seja, contanto que extermine tudo!  e que se dane os mortos, as criançinhas, as grávidas morrendo no meio do pandemônio, daria tudo só para ver esse novo começo, sabia? Esses novos primórdios. E os filantrópicos iram me dizer, “vai recomeçar a carnificina, o pecado original, as guerras”, tanto faz, serão guerras novas com seus respectivos mortos e sobreviventes, ao invés da maçã, a banana, é mais sugestivo, “e os direitos humanos?”, uma hora ou outra hão de criar algo parecido, “mas isso não é uma repetição?”, é justamente aí onde eu queria chegar, sem me contradizer, que se repita, aos diabos! O importante é recomeçar, é simplesmente apagar tudo e ter nas mãos, não o começo de uma nova era, de um novo império, e sim, de um novo mundo, criado no meio dos destroços, só por meia dúzia de sobreviventes que talvez, diante do escarro desta catástrofe, tenha que inventar até a roda, já pensou, que espetáculo?

- 4:00

A vontade que eu tenho é de jogar qualquer coisa desta janela, de sair pelas ruas quebrando os vidros dos carros, atirando pedras nas portas das lojas, batendo nas portas das casas, tocando as campainhas, não por anarquismo, mas por amor ao barulho, apenas para ver o que foi violentamente atingido se quebrar, para ver o que foi construído de acordo com a sensatez da gravidade, desmoronar com a gravidade do impacto, mas não é por vandalismo, é só para lembrar que aqui ninguém dorme, que aqui não há sono, que aqui só há um repouso extremamente frágil e ingênuo, abalado por qualquer princípio ordinário de desordem.

- 6:30

Às vezes me bate a vontade de não fazer nada, por mais que não fazer nada, por uma seqüência lógica, signifique justamente o contrário... Mas eis o grande prazer, é neste paradoxo sutil em que consiste a volúpia, pois não fazer nada é fazer alguma coisa...       
 A contradição de ficar sentado à beira do mar como se todo dinheiro do mundo estivesse concentrado em uma ou duas cervejas, a contradição de acender um cigarro enquanto as academias estão lotadas de vapores calóricos, enquanto eu conservo exaustivamente meu sedentarismo – o que é a grande marca humana, o grande mote da evolução. Não fazer nada enquanto o mundo se acaba, enquanto os matemáticos ficam carecas, enquanto a ciência caduca, enquanto os plantões médicos ardem em febre, e as delegacias se enchem de queixas. Cá, alheio, e à parte, numa mediocridade apoteótica, fazendo o mínimo de movimento possível entre os quais o mais brusco é o piscar de olhos, e qualquer pensamento, por mais convulsivo que seja, consistiria apenas no prazer obsceno de multiplicar, soma e diminui zeros numa calculadora, e, por mais que as coisas insistam na ditadura do movimento, que as sirenes gritem, que as luzem pisquem, ou que em mim surja a vontade de imprimir qualquer reação, insisto, como um rebelde pacato, em permanecer parado, estático, crendo fielmente no cinismo da minha inércia, na paciência da minha tranqüilidade, na inutilidade de todos os atos, dos heróicos aos infames, na inexistência da existência...