domingo, janeiro 27

I


I

a única coisa que se vê é o breu. o escuro. o nada. o vazio. abre-se uma porta que se fecha rapidamente. ouve-se o barulho dos meus passos sobre o assoalho de madeira. uma luz enfraquecida começa a iluminar calmamente o lugar. ainda pouco se vê. apenas vultos. há uma cadeira. sento-me. bebo de uma garrafa de vinho que surge da escuridão aos meus pés.

— estava discutindo sobre você, meu querido personagem, antes de adormecer na cama e vir parar aqui. sinto sua presença. deixe-me vê-lo enquanto não me acordo desse sonho maluco. preciso ver a mim mesmo, esquecer-me-ei depois, eu juro! mas por um instante, me permita admitir a mim tudo o que me falta.

II

apareço diante de mim e percebo que estou diante do mais óbvio espelho.

caio no abismo da lucidez. tenho tentado me encontrar, mas encontrar a quem? sei que não posso. o desejo do encontro não passa de uma fuga deste encontro. uma fuga da existência. e essa fuga, que tenho realizado há tanto tempo, aonde me levou? uma dor imposta por anjos de asas quebradas e olhos furados pela chama da criação, da felicidade da multidão, do brilho de bilhões de estrelas apagadas toda manhã pelo despertador, invade minha alma e me torna esse alguém tão paradoxal por dentro. eu não faço sentido. tudo pode acontecer em mim, tudo, pois sinto o vazio onipresente da vida. o devir de um tempo que não existe, não pode existir. ainda ouço o ecoar do big bang. ainda possuo o caos das explosões vulcânicas agitando meus átomos. ainda sinto-me arrastar para o mar, com o desejo de um rio de sangue que sonha em levar tudo consigo. mas não posso, o nada é o que restará em mim. é para o nada que quero caminhar. só assim, tenho em mim todas as possibilidades como um Álvaro de Campos.

III

levantei-me da cadeira e me vi parado diante de um imenso abismo escuro no qual saltei sem pensar, sem mais delongas desapareci na ubiquidade. o que vi, não tenho como explicar."