quinta-feira, julho 7

Vida em uma lauda: A vitrola

Entre, disse a ela suavemente na penumbra de uma tarde preguiçosa, ou de uma manhã sonolenta. Queria dizer-te mais do que posso, falou-lhe ao ouvido enquanto ele fechava a porta e um novo mundo abria-se... sem espelhos, já se conheciam tão bem, um ao outro e a si mesmos. Limitou-se a frases conhecidas e sofreu por isso. Mudou de assunto: Lembra dos dias azuis e serenos que tivemos? Continuou a lhe sussurrar, enquanto ele delicadamente a beijava e desabotoava suas luvas, tão macias quanto suas mãos. Poderia afundar-se nelas.

As trilhas sonoras esgotaram-se, estão cansadas de nossos ouvidos. Será por isso que está tudo tão silencioso? Questionou-o sentindo a mudança naquele ambiente, embora houvesse sons no silêncio...

Ainda guardas os LP’s? Insistiu enquanto era conduzida em direção à janela. Apoiou as duas mãos sobre o mármore frio e úmido sentindo a brisa que invadia o quarto. Ele, delicadamente desatou o nó de seus cabelos vermelhos que ela insistia em esconder. O fogo alcançava os seios dela e as labaredas espalhavam-se queimando docemente a pele branca do corpo dele. Ele a ouvia enquanto tentava controlar o fogo que lhe consumia. Queria vê-los tocando mais uma vez... talvez não eles, mas ver o teu ritual de fazê-los tocar... assim como me apresentastes a vida... Contar-me sobre os podres de alguns cantores, alertando-me para a natureza humana até então para mim mascarada, mostrar-me os bastidores e seus segredos. Ela continuou sentindo a pressão do corpo contra a janela... Vê-lo passar os dedos por sobre as pontas dos LPs já gastos pelo tempo, um a um: a infinita contagem dos amores colecionados...quantas histórias até encontrar o que queria, fazendo-me refletir sobre escolhas e caminhos, e no final, sempre havia os três preferidos, mas era o terceiro que tocava, assim como a mulher que marcara sua vida... Tirá-lo da capa, virá-lo de um lado a outro sem nenhum pudor, sorrir com tamanha satisfação... e com o olhar, tirar-me para dançar...

Fale-me, ela insistiu, sentindo o calor que já escapava pela janela, o que houve com os dias azuis? Transformaram-se, disse ele, e continuou...não vês, frágil era a agulha que deslizava sobre o vinil, era o único mundo que ela conhecia, não resistiu ao tempo e se rompeu, cansou das mesmas coisas, gira e volta, eram sempre os mesmos discos, quando irritada, arranhava-os. E não a substituístes? Aflita, ela indagou... Não, respondeu ele, não a fabricam mais. Era uma agulha rara... e tão sensível, talvez única, mas imutável. Na verdade, acredito que com o passar do tempo ela quisesse evoluir, mas não resistiu...diferente de ti. Tu evoluístes amor, e não perdestes tua sensibilidade, continuas apaixonante. O que dura, é o que é capaz de se transformar, de interagir com a vida, entendes? Por isso não precisamos dos LPs, temos todas as melodias... ouvimos quando nos queremos, finalizou.

Mas, e a vitrola? Ela quis saber... A vitrola já não existe, ele respondeu. Não faria sentido sem a agulha. Ele esticara os braços dela sobre a janela prendendo-os com uma das mãos, enquanto a outra se misturava as chamas. Aquecendo-lhe o pescoço, segredou a pérola  presa a orelha dela, cúmplice daquele momento: Amor hoje, cada dia possui sua própria cor, seu ritmo e sons, vivemo-os de formas diferentes. Esqueça a vitrola, e o azul dos dias, estes têm agora as cores que queremos dar para eles...Venha, dance comigo!

Os sons do silêncio incendiaram-se!

Alice Nascimento