quarta-feira, novembro 16

AINDA É TEMPO




Tarde da noite. Lá pelas duas horas da manhã. Já cansada. Com a luz do monitor massacrando os olhos.

Gisa espera que Clô dê um sinal de vida...

Só a conhecia pela internet. O site de relacionamento dizia que as duas eram amigas. Mas o contato era apenas superficial. Ela não poderia simplesmente ligar. Sabia seu endereço, mas não poderia bater em sua porta. Estava virtualmente limitada, esperando que Clô desse um sinal de vida on line e que, enfim, um suspiro binário de seu computador aparecesse na frente de seus olhos.

Clô entrou...

Gisa digita...

GISA – Olá...

Clô foi olhar primeiro a caixa de e-mails. Demorou a responder. Não estava tão ansiosa quanto Gisa. Foi para a internet como quem brecha a porta da rua apenas para ver o que está acontecendo. Para se sentir, uma vez vendo todos os seus contatos no lugar, que estava informada e que, portanto, fazia parte do mundo. 

Clô digita (graças a Deus!)... 

CLÔ – Olá!!
GISA – Esperei por você a noite toda...
CLÔ – Sem sono?
GISA – Pois é... Rs...

         O que se instaurou ali não foi o silêncio, e sim, uma ideia de silêncio. Ambas estavam em cômodos isolados de suas respectivas casas. De barulho, apenas alguns grilos que se perpetuavam noite afora e alguns carros perdidos na madrugada. O silêncio era a impressão que algo tinha que ser dito e não o foi. O silêncio era o incômodo da falta de palavras, do diálogo lacônico, do contato perdendo seu contraste... 

GISA– Como é que está aí, onde vc mora...
CLÔ – Mais ou menos e vc?
GISA – Meio mais ou menos também...
CLÔ – O q foi?
GISA – Descobri que meu tempo de vida está acabando...
CLÔ - Hã?
GISA – Vou morrer...
CLÔ – Mentira... Não brinque com isso...
GISA – Falo sério... Tenho pouco tempo... Por isso te esperei a noite toda... 

          Clô passa a mão no teclado. Não sabe o que dizer. Está perplexa. Espera inconscientemente que as palavras isquem seus dedos. Que uma frase saia pronta só pelo simples fato de ali conter todas as letras e as possibilidades de combinação. Exercício inútil. Não consegue digitar uma palavra. Tudo que escreve, apaga logo em seguida. 

GISA – Vc é casada?
CLÔ – (depois de um tempo) Viúva...
GISA – Que bom...

          Clô, obviamente, estranhou. Gisa era casada e não parecia ser do tipo que gosta de aventuras de caráter libidinoso. Já tinha visto as fotos dela com o marido. Felizes, ou pelo menos, aparentando felicidade para os amigos. Já matinha contato com Gisa há mais ou menos seis meses. Tinha se identificado com ela. Trocava receitas. Compartilhava seus problemas. Divulgava seus planos. Combinaram, inclusive, de se visitarem um dia, quem sabe. Não insistiram muito neste assunto. Ficou apenas uma idéia subtendida de que o dia as duas iria se encontrar. Esse dia chegou.

CLÔ – Não posso...
GISA – Mas por quê? Faz um esforço...
CLÔ – Tenho coisas para resolver...
GISA – Você disse que viria um dia...
CLÔ – Por estes tempos a situação está meio difícil...
GISA – Você não quer, é isso?
CLÔ – Claro que quero... Apenas não posso...
GISA – Te arranjo as passagens...
CLÔ – O problema é tempo...
GISA – Estou morrendo Gisa...
...
CLÔ – Não posso me casar com seu marido!
GISA – O que você tem a perder?
...
CLÔ – Pq você quer fazer isso?
GISA – Por que ele é teimoso feito uma mula. Tenho medo que ele morra. Talvez de tristeza. Talvez por esquecer-se de tomar o remédio para o coração. Ele não pode viver sozinho. Ele precisa de alguém sempre ao lado...
CLÔ – Eu não tenho mais idade, Gisa...
GISA – Quem não tem mais idade é quem está prestes a morrer... 

Clotilde não responde. Apenas olha a sala vazia. A tela do computador iluminando os móveis. As fotos ao lado do filho. Um retrato em preto e branco do marido fixado na parede. Bastava escrever ‘sim’. Precisava de um homem. Não queria morrer sozinha. Cada filho tomava seu rumo e ela, cada vez mais só, e mais rabugenta, se afogava em suas próprias rugas. Levantou-se por instante. Resolveu ir para o banheiro. Acendeu e luz. Olhou seu reflexo no espelho quadrado. Esboçou um sorriso. Olhou-se de perfil e ajeitou os cabelos. Ainda tinha um traço de vaidade. Ainda não tinha traçado completamente a fronteira entre a mulher e a velha. 

 CLÔ – Ok!

Adalgisa teve um acesso de tosse. O câncer dava seu aviso. O marido veio ao seu encontro. O soro estava pela metade e não precisava ser trocado. Ele passou as mãos nas costas de sua senhora. Aquele gesto, de alguma maneira, tinha o dom de aliviar a tosse. Fez menção de pô-la para deitar agarrando-lhe levemente os ombros, com a intenção de conduzi-la para cama. Ela,  recompondo-se, recusou gentilmente. Ela se levanta com dificuldade. Antes que o marido viesse ampará-la, levantou o braço como se dissesse “deixe estar, estou bem”. E com a mesma mão, apontou para cadeira. Ele se sentou. 

ADALGISA – Essa aqui é Clô... Uma amiga... Ela cuidará de você quando eu partir...
AGENOR – Não diga isso, Gisa... Você não vai a lugar algum...
ADALGISA – Você é tolo...
AGENOR – O que eu faço?
ADALGISA – Diga alguma coisa para ela...
AGENOR – Não falo disso...
ADALGISA – Digite algo, por favor...
AGENOR – Você está bem?
ADALGISA – “O”, “L”,acento agudo, “A”...
AGENOR – Eu não sei usar essas coisas...
ADALGISA – É só escrever como se fosse uma máquina de datilografar...
AGENOR – Digitei...
ADALGISA – Aperte ‘enter’.
...
AGENOR – (com lágrimas nos olhos que descem com dificuldade, se infiltrando pelos traços do rosto marcado pelo tempo) Eu te amo, Gisa...

Clô está digitando...

ADALGISA – Eu também... Mas faça apenas o que eu te peço...