quarta-feira, julho 31

Vagabundos e Egocêntricos


Nos últimos meses o Brasil vem passando por constantes manifestações que começou por causa do aumento do preço de passagem da cidade de São Paulo e outras capitais do país em que os estudantes foram às ruas contra o aumento das tarifas.

Começou a surgir outras causas que foram reivindicadas por diferentes categorias e setores da sociedade, como a PEC (Projeto de Emenda Constitucional) – 37 que visava tirar poderes de investigação dos ministérios públicos estaduais e federal, deixando apenas para as policias civis dos estados e federal, por exemplo, conquistada a revogação da PEC, surgiram outras reivindicações que no momento é pauta de discussão na sociedade.

Entre elas é a dos médicos através dos Conselhos Regionais de Medicina nos estados (CRM´s), Conselho Federal de Medicina (CFM) e outras organizações que representam a categoria, isso começou quando o governo federal resolveu atender a reivindicação vinda das ruas que pediam mais médicos nos postos de saúde e em hospitais do SUS (Sistema Único de Saúde), principalmente nas periferias de grandes cidades, cidades interioranas e em zonas rurais.

Devido o desinteresse de muitos médicos que se recusa a trabalhar nessas localidades, o governo começou a cogitar possibilidade de trazer os médicos de outros países, principalmente os cubanos, começou daí a briga de médicos com o governo, por serem contrários a vinda destes ao país ao alegarem que os médicos brasileiros devem ser priorizados e os de fora devem se submeter a uma revalidação pelo Conselho Federal de Medicina, numa espécie de prova da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para exercer de fato a advocacia.

Os médicos têm todo respaldo e legitimidade pra manifestar e reivindicar (algo que pouco se vê por sinal), mas eu não sou solidário com essa categoria, está certo que existem prefeituras que não pagam devidamente, dá calote (atraso dos salários) e sem contar as mínimas condições de trabalho em hospitais e postos de saúde.

A corrupção existe no SUS é a principal causa do descaso no sistema de saúde em todo o Brasil, principalmente em cidades interioranas, zonas rurais e periferias nas grandes cidades, justamente nas localidades onde há falta de profissionais da saúde, especialmente de médicos.

Contudo, reitero a minha não solidariedade a essa categoria. E porque? Historicamente e culturalmente os cursos de direito e medicina são voltados para as classes elitistas que serve apenas para o status quo ou simplesmente para ser chamado de doutor.

É comum bacharéis de direito e medicina quererem a todo e qualquer custo serem chamados de doutor, advogados e médicos ostentar a denominação sem sequer terem feito a especialização e ainda mais o doutorado, enquanto o papel social dessas profissões de fato é ignorado.

Os estudantes e bacharéis em direito quando se formam muitos só pensam apenas na ascensão social sem se importar com as injustiças, os estudantes e bacharéis em medicina, este em especial, quando se formam, muitos não querem trabalhar em postos de saúde ou hospitais do SUS.

Muitos destes pensam apenas na ascensão social ou política, é comum ouvirmos frases tipo: quero ser médico pra ser chamado de “doutor” (sem ter feito o doutorado), quero ser médico pra ganhar dinheiro, quero ser médico porque quero ingressar na carreira política, seja em mandato eletivo como vereador ou deputado ou ser diretor de posto de saúde ou de hospital, mas sem precisar trabalhar ou ir ao local de trabalho, trabalhar num grande hospital privado ou simplesmente montar o seu próprio consultório.

Resumindo, grande parte dos médicos não quer trabalhar de fato na rede pública, principalmente dos interiores, zonas rurais ou periferias das grandes cidades, que se encontram a maioria dos pobres e excluídos da sociedade, vivem na condição de pobreza extrema ou abaixo da linha de pobreza.

Preferem ficar nas cidades e em áreas nobres com seus consultórios cobrando 500 reais por consulta de 30 minutos estampando um lindo sorriso colgate com os dentes brancos, ouvindo os dizeres do cliente (não paciente porque está pagando para ser consultado num ambiente privado), pega o pulso do individuo (e olhe lá quando pega) para saber o que sente e em seguida passa a receita médica e indica um outro médico para o mesmo procedimento (quando o caso não é grave) ou pede o retorno pra saber do resultado (como forma de faturar mais dinheiro ($$$)pelo serviço das consultas médicas).

Agora pegar num bisturi, fazer de fato todo procedimento que deve ser feito pra ser saber o que passa o individuo que nesse caso é o paciente, são os vagabundos que adoram desfilar nas ruas todo de branco e colocar nos ombros o jaleco, como forma de mostrar a sociedade a sua posição social, são os mesmo que se recusam a colocar as suas lindas mãos de porcelanas ao corpo do paciente banhado de sangue, fratura exposta ou vísceras do lado de fora.

Esses tipos de trabalho muitos destes não querem exercer, são insensíveis a causa humana e até aos indivíduos que clamam por atendimento antes de morrer, é comum nos hospitais públicos pacientes morrerem clamando por um atendimento diante da vista destes médicos que nada fazem e nem sequer se comovem diante da situação enferma.

Esse é o motivo destes senhores e senhoras de jaleco iràs ruas protestarem contra o governo, porque não querem trabalhar, querem continuar no seu lugar social sem contato com os que realmente precisam.

O governo federal para resolver o problema que está sendo clamado nas ruas para resolver o problema da falta de médicos, cogitou a possibilidade de contratar médicos estrangeiros, principalmente os cubanos, os conselhos e organizações da categoria de forma corporativista foram contra, o governo ouvi a reivindicação dos médicos e estudantes de medicina.

Criou o “Programa Mais Médicos” que visa ampliar o número de vagas nos cursos de medicina, principalmente nos interiores que estão instalados as universidades federais, o próprio governo nesse programa vai pagar 10mil reais para que os profissionais atuem nos interiores, zonas rurais e periferias nas grandes cidades, sendo que as prefeituras se encarregarão de garantir a moradia e alimentação, não tendo mais a responsabilidade de pagar o salário destes profissionais que são altos por sinal, comparável com outras profissões, como a de professores.

Em contrapartida, o governo através do ministério da Educação pretende reformular o curso de medicina aumentando de 6 para 8anos, sendo que 2anos será dedicado a trabalhar no SUS, principalmente em localidades que carecem desses profissionais como foi citado anteriormente.

E novamente os conselhos e organizações da categoria estão nas ruas contra o governo para protestar contra o programa, aumento de duração do curso de medicina de 6 para 8 anos e a obrigatoriedade de trabalhar nos hospitais do SUS (a principal causa da revolta) e em localidades que carecem de médicos.

Nessas circunstâncias devemos ser solidários aos médicos? Devemos estar no lado deles contra o governo? Eu estou no lado do governo em relação a problemática da falta de médicos que deve ser resolvido em imediato devido o clamor vindo das ruas com as manifestações ocorridas recentemente.
Os senhores e senhoras dos jalecos não estão nem aí pra ruas e muito menos das necessidades da população, pouco importa que a função deles é salvar vidas, sendo que o importante é o status e ascensão social e politica sem dar a importância do seu papel social na sociedade.

Eu tiro o exemplo de mim mesmo, sou professor da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) pelo Programa Darcy Ribeiro, trabalho nas cidades de Balsas, Barra do Corda, Grajaú e Loreto, essas cidades ficam entre a região central e sul do Maranhão, bem distante da capital que a viagem de ônibus dura em média 12 horas, sendo que em Balsas a distância é maior podendo chegar a 15 horas de viagem e menor é Barra do Corda podendo durar apenas 10 horas.

Eu sou um dos poucos que mora em São Luís que se dispõe a viajar toda semana pra trabalhar nessas localidades (ainda fui chamado de louco por alguns por achar que não valeria a pena ou por ser arriscado), a maioria preferem ficar em São Luís na via crucis ao acordar cinco da manhã para sair de casa as seis pra pegar ônibus extremamente lotado em que as pessoas te apertam, imprensam, esfregam, pisam no seu pé, empurra, esbarra e sai do ônibus e chega ao local de trabalho suado, roupa amassada, manchada e suja, exausto e estressado, sendo que sai de casa bem humorado e com a roupa bem passada e limpa.

Eu mesmo já passei por isso diversas vezes quando saia de casa para ir ao trabalho, dizia pra mim mesmo que isso não era vida pra mim, ficar preso num transito engarrafado atrasando o tempo da viagem e o horário de chegar ao trabalho, tendo que assinar o ponto e se passar do horário e limite de tolerância levava o carimbo no lugar da assinatura, e se levasse três carimbos levaria uma falta e um falta resultava no desconto do salário entorno de 50 a 60 reais, para um pobre trabalhador que recebe um salário mínimo é uma humilhação.
Eu no meu caso dei um basta a essa humilhação, mas há colegas que eu conheço que prefere ficar na via crucis ou nessa humilhação, trabalhar em duas ou três escolas diferentes para receber ao menos uns 2 mil reais por mês, que as vezes nem chega a esse valor por causa do imposto de renda e outros impostos como a previdência, por exemplo, chega em casa estressado e mal humorado, e passa a semana toda desse modo.

E ainda assim se recusam a ir trabalhar no interior, mesmo sabendo da vantagem de ganhar mais com o salário e ajuda de custo, e quando vai é pra perto ou menos longe, se falta médicos no interior do Brasil e particularmente no Maranhão, falta também professores.
O Programa Darcy Ribeiro (PDR) gerenciado pela UEMA é pra qualificar os docentes e formar professores que já atuam na área, mas que não tem diplomação de nível superior e são impedidos de atuar nos outros níveis de ensino, como fundamental e médio.

Porque muitos dos professores que atuam no ensino, são do ensino básico e abre espaço para os que não atuam na educação pra se qualificar com os curso de nível superior na área de licenciatura, essa é a finalidade do PDR em muitas cidades do Maranhão, como Loreto que tem 10 mil habitantes, que carece não só de médicos mas também de professores.

Há outros programas desse gênero como a PARFOR (Programa de Aperfeiçoamento e Qualificação de Professores) que é gerida por instituições de ensino superior em todo o Brasil nas unidades federativas, como a UFMA (Universidade Federal do Maranhão) e IFMA (Instituto Federal do Maranhão), por exemplo, a UFMA tem outro programa que é o PROEB (Programa de Qualificação de Professores do Ensino Básico), todos esses programas citados são pra qualificar os professores com cursos de nível superior na área de licenciatura, e em especial nas cidades interioranas que há maior carência de profissionais da educação.

Porque vocês acham que as prefeituras vivem promovendo concursos a torto e a direita para os cargos de professor? É só por causa da pressão dos ministérios públicos estaduais e federal? São Paulo que é o estado mais rico da federação, que detém mais da metade do PIB (Produto Interno Bruto) nacional e os paulistas faz questão de alimentar o slogan “A locomotiva do Brasil”, tem a carência de 60 mil professores na rede pública em todo o estado, o governo paulista vai abrir o seletivo pra contratar de imediato 50 mil professores.

A prefeitura de Imperatriz – MA deixou o edital aberto por dois anos (desde 2011) para a vaga de médico pediatra com o salário de 30 mil reais, devido o desinteresse de profissionais da área, o edital foi cancelado, e Imperatriz é a segunda maior cidade do estado com a estimativa de 250 mil habitantes.

Se no estado mais rico da federação há carência de profissionais na educação da rede pública, imagine no Maranhão, o estado mais pobre e representa os piores índices sociais do país? Eu percorro o Maranhão toda semana, já viajei de uma cidade a outra em pau de arara, e conheço bem a realidade que vive a população em localidades distante das sedes dos municípios.

É esta realidade que os profissionais da saúde não querem vivenciar e nem mesmo os professores, o último seletivo da UEMA pro PDR que esteve aberto o edital para as inscrições, era pra ser até o dia 10 de julho e foi prorrogado para o dia 19.

Porque eles prorrogaram? Eu mesmo fiz a divulgação intensa do seletivo na minha página pessoal do facebook pela internet e incentivando muitos colegas a se inscreverem, e mesmo assim serão poucos que eu conheço irão se inscrever (espero que eu esteja enganado nessa vez), preferindo ficar em São Luís na via crucis pegando todos os dias ônibus lotado, enfrentando o transito engarrafado, trabalhar em duas ou três escolas numa espécie de autoflagelo e auto exploração para ganhar pouco ou receber 5 ou 10 reais hora/aula em algumas escolas que nem sequer oferece condições de trabalho e de ensino.

Diante da realidade que está posto, eu não sou solidário a esses médicos e reconheço as intenções do governo de reverter esse problema, que é o resultado das manifestações que estava acontecendo nas ruas de todo o Brasil.

Porque chama os médicos de vagabundo? Não é comum confundir o trabalhador e pai de família com o vagabundo? O sujeito não pode ficar desempregado que logo a sociedade o condena e o chama de vagabundo. Porque não chamar os médicos também dessa forma ou confundi-los com os vagabundos? Esses senhores e senhoras de jaleco não são dignos de serem chamado de doutores, nem que uns tenham feito o doutorado.

Se para uns, lecionar é um gesto de amor, em que o professor não pode tanto reivindicar por salários, porque os médicos estão nas ruas então contra o governo, sendo que a iniciativa é contratar mais médicos para trabalhar nos interiores com os salários astronômicos (10 mil reais)?

Cadê a compaixão, o amor e a solidariedade com o próximo desses médicos? Eles também devem trabalhar por amor, tanto quanto os professores, porque a função deles é salvar vidas e garantir o bem estar do próximo, num gesto de humanidade, sensibilidade e respeito acima de tudo.

Encantado ( Performance )


Por Vinicius Viana


Baseada nas rodas de Tambores do Maranhão, “Encantado” é um espetáculo, que mostra a beleza visual e corporal em um conjunto de expressões sagradas, que a partir da teatralidade e da dança, através do batucar constante que varam as noites, partem para uma coreografia pulsante enfatizando a ligação entre os pés descalços e o terreiro, gingados pelos cantos entoados para passar do corpo vivo ao transe em um personagem vivo e transmitir um vocabulário com gestualidades que evidenciam a ligação entre a terra e o céu, o universo como todo. Podemos considerar como um fenômeno rompendo com o espaço e o tempo, e vislumbra-se onde palco é a tradição e tudo se torna encantado.



Fotos: Indra Nogueira

terça-feira, julho 30

Sonhos

Estava presa num lugar que parecia um quarto. Era todo branco e claro. Havia uma cama, um grande espelho que eu desconfio ser uma janela de observação, um relógio de parede antigo e uma saída para ar. O banheiro, fechado durante a madrugada e obsessivamente limpo, tinha duas portas, uma dava para o meu quarto, a outra, para o mundo. Era minha única comunicação e, para meu azar, era também surda e muda.

Não sei quanto tempo fiquei desacordada. Minha última lembrança foi de bater o carro na madrugada de uma sexta-feira contra um poste. Eu havia bebido com amigos e perdido o controle numa curva. Meus ferimentos estavam bem limpos e toda manhã ao meu lado estava dois comprimidos com a indicação "TOME-ME".

A princípio achei que eu estivesse numa ala nova de um hospital, No entanto, as portas trancadas e um gás sonífero exalado toda meia noite não deixavam qualquer dúvida de que eu me tornei uma cobaia de experimentação. O que me exaure dia após dia são minhas lembranças: o que será que aconteceu com meu noivo? Como será que vai meu chefe? O que aconteceu? Essa última dúvida faz meu cérebro se contorcer filosoficamente afim de responder coerentemente essa questão. Já cheguei a beira da loucura achando que eu teria sido abduzida por óvnis, até mesmo cheguei a pensar que fui sequestrada, mas essas são possibilidades não eram passíveis de veracidade.

O que me chamava a atenção era como eu não tinha nenhum contato com outros seres vivos. Notei nesse tempo em que já estou que há um trabalho enorme para que eu não tenha nenhum tipo de comunicação com nada que se mova e seja vivo. Pelo jeito a sala que estou é vedada para áudio, mesmo com a saída na parede, por onde vêm minhas refeições, não consigo escutar nada. Não tenho nenhum contato visual, e acho que sou monitorada 24 horas por dia, porque, certa madrugada que acordei, o banheiro estava trancado e ouvi barulho de esfregões e água corrente. Gritei por socorro, mas de nada adiantou, ou melhor, só percebi outra dose de gás sonífero sair pela saída de ar.

Só o que me consolava eram meus sonhos. Certa noite, sonhei que estava num jardim colhendo flores, de repente eu era criança de novo e havia um parque de diversões enorme na minha frente.. Fui correndo brincar no gira-gira, mas ele começou a se tornar um furacão e, num instante, eu estava no centro dele. Então uma face apareceu sob o furacão e me disse: CORRA. Eu corri, mas passei a andar em círculos e percebi que um exército de coelhos assassinos me perseguiam com adagas e espadas. Consegui chegar ao meu quarto e lá me tranquei. Corri deitar debaixo do meu cobertor e quando dei por mim estava coberta de aranhas, meu cobertor não passava de uma grande teia. Acordei aterrorizada.

Eu perdi a conta dos dias que eu passava lá. Eles eram tão iguais que não fazia diferença se eram um ou dois, mas pareciam semanas e meses. Simplesmente o tempo parou para mim, não havia mais calor ou frio, não havia mais chuva ou sol. Eu me tornei pálida e meus olhos escuros ficaram ainda mais destacados no meu rosto. Usava sempre uma camisola branca. Mas eu não perdi a vaidade. Um dos meus passatempos é de refazer a camisola até ela parecer uma outra roupa. E meu “guarda-roupa” ia ficando a cada dia mais diversificado.

Reparei que estava ficando gorda, reclamei que queria fazer exercícios. No dia seguinte apareceu uma bicicleta ergonométrica. Estranhei o fato. Queria testar melhor. Então passei a reclamar e pedir de tudo. No dia seguinte lá estava a coisa reclamada anteriormente. Era inacreditável. Certa vez resolvi pedir amigos, então uma pessoa, quando eu acordei, dormia numa cama ao lado. Comecei a chorar. Era inacreditável.

Comecei a perguntar a essa pessoa. Quem era, o que havia acontecido, desde quando estava ali. Andréa era como ela se chamava. Tinha dois filhos, estava lá fazia algum tempo e coincidentemente desejou a mesma coisa que eu no dia anterior. Coincidência? Ela tinha por última memória estar no hospital, num quarto e estar sendo anestesiada para fazer uma cirurgia. Quando ela estava só também apareciam dois comprimidos com a mesma indicação. Depois que nos encontramos passou-se a não aparecer mais qualquer comprimido.

Andréa e eu tivemos a mesma idéia. Queríamos conhecer mais gente. Pedimos. Quando o relógio bateu a meia noite ainda estávamos jogando truco, em vez do gás sonífero, a porta do banheiro deu um estalo. Foi então que eu e Andréa não sabíamos o que fazer. Comecei a sentir desespero, uma espécie de agonia. Alguém iria entrar por aquela porta. Não aguentei. Andréa disse que não, que eu devia ficar longe da porta, mas não consegui. Dentro do banheiro havia dois vestidos de festa, um com meu nome e o outro com o de Andréa. Vestimos e eu fui adiante. A outra porta também estava destrancada e eu a abri.
Havia um salão enorme com um bifê. E muitas portas, incontáveis. Imaginei que todas davam para um banheiro que daria para outros quartos em que estariam outras pessoas jogando truco ou vendo TV a cabo. Comecei a gritar. Pouco a pouco as outras portas foram se abrindo desconfiadas, o salão foi enchendo de pessoas como nós. Algumas choravam, outras gritavam.
Eu comecei a entender o que acontecia. Era um mecanismo de reintegração social, mas todas as pessoas tinham que passar por um ritual antes. Mas porquê? E será que eu estava certa? Já havia me enganado antes, mas algo me dizia que desta vez eu estava certa. Talvez fosse o desespero por uma resposta a tudo aquilo, talvez fosse apenas um sonho, talvez eu ainda estivesse na batida, estava sendo socorrida e minha mente divagada pelo que estaria para acontecer e não pelas minhas lembranças. Essa última hipótese me incomodou, e se eu estivesse morrendo enquanto tudo isso acontecia?
Tudo fazia sentido! Não havia frio ou calor, tudo que eu desejava aparecia. A planta do lugar teria que ser redesenhada milhares de vezes para que toda aquela construção fosse verdadeira. De onde teriam surgidas aquelas pessoas? Era tudo fruto de uma mente cansada e debilitada. Eu mesma era fruto. Será que minhas memórias eram minhas? Quando cheguei nesse ponto parei de questionar. Eu tinha que manter uma certeza, eu sou eu e minhas memórias são minhas.
Me lembrei da festa. Eu estava agora no centro sendo olhada por todos. Estava nua... meu vestido havia se dissolvido. As pessoas pareciam não me enxergar nem me escutar. Eu tentava contar a elas o que estava acontecendo, mas não conseguia. Comecei a chorar, me dava por vencida. Eu não queria continuar ali. Queria voltar ao meu quarto. Quando cheguei lá outra surpresa.

Meu quarto só tinha novamente a cama, o relógio, a saída de ar e o espelho. Tentei voltar para a festa, talvez eu tivesse errado de quarto, mas todos os quartos eram iguais, todos eram o meu, não importa que porta eu tentasse. Me joguei exaurida na cama, não havia nada que eu pudesse fazer, então, lembrei de Andréa, ela talvez poderia me ouvir. Corri de volta para a festa, mas quando saí já não era mais o salão.
Era um local diferente. Tive medo de sair, senti que ia conseguir as respostas que tanto precisava, acabei voltando para o meu quarto. Fui dormir. Quando acordei estava naquele mesmo local. Era também todo branco e claro, mas não havia mais nenhuma porta. Era como se fosse um jardim inextensível, mas sem flores, apenas um tapete branco. Da névoa surgiu um homem.

O homem veio até mim e me disse: Carol, sei que você tem muitas dúvidas, mas antes eu preciso te mostrar um coisa que tudo se resolverá. Então tudo começou a girar em volta de nós dois. E num instante estávamos num enterro. Eu parei para olhar as pessoas, estava enjoada, queria vomitar, mas não sabia o porquê. Passei a olhar nos rostos das pessoas. Vi meus familiares, meu noivo, todos de luto e chorando muito. Não senti a falta de ninguém, me perguntava quem teria morrido.

Eu fui abduzida? Perguntei a ele. “Não, Carol, olhe mais atentamente que você terá as respostas que busca. Você sabe o que aconteceu, apenas está negando”. A hipótese era muito louca para ser verdade, eu percebi que eu teria que achar a resposta dentro de mim e sozinha. Cheguei perto do meu noivo e ele pareceu me encarar. Dei um abraço forte nele, mas comecei a escorrer. Percebi que eu não posso tocar ninguém. Por quê? “Você sabe o porquê, Carol. Pare de negar e encare os fatos, veja por quem pranteiam e rezam”.

Cheguei perto do túmulo e quase desmaiei. Comecei a gritar e chorar, enlouquecida, enraivecida. Tudo começou a fazer sentido. Era eu que estava ali, mas não era eu, porque eu estava aqui. Eu morri? “Sim, Carol, você morreu”. Então, enquanto as respostas vinham na minha cabeça, todas aquelas pessoas, mortas, eu senti que tudo novamente rodava, pobre Andréa, ela tinha dois filhos, cheguei numa sala de jogos onde havia várias pessoas, a maioria idosos, uma festa para mortos.

Navegante

navegante a noite nos olhos e uma lâmpada tentando iluminar a escada duma enorme caixa d'água na beira da estrada os pés no chão e uma vontade irreprimível de partir um caminhar desdenhado de tudo um sorriso-escudo um sorriso que abre caminho me poupa de perguntas irrespondíveis um desconhecido que me aperta a mão e me empresta o fogo os sorrisos anêmicos e aéreos das virgens e os contidos e desajeitados das interioranas enquanto uma sensação de finitude toma conta toda vez que me vêm à cabeça as imagens de seus rostos felizes como se me dissessem para guardar segredo e não pensar nisso agora não pensar no quão pesado é o nosso fado fragilidade esvoaçante olhos que estampam abismos molhados redemoinhos transbordam a garganta como uma agonia uma irremediável vontade de contemplação meu último cigarro um sorriso de volta compactuando silenciosamente ninguém precisa saber é sempre um naufrágio que nos espera.

domingo, julho 21

O vestido


 Por Maria Ligia Ueno

E o meu coração resolveu bater forte hoje. E no meu vestido se percebe a marca da aceleração do pulso, marcando o tecido e desenhando espirais pelas minhas curvas. Pernas eriçadas e pelos cruzados, esperando.

Ó Édipo, tu mataste a esfinge que havia em mim, desvendou os mistérios do portal Tebano, transformastes-me na filha de Asopo, tiraste-me a inquietação para introjetar o sossego nas minhas artérias. 

E o meu vestido roda sozinho, sem qualquer vento, sob a bandeira nacional, parece até que tem vida própria, bailando ao som do teu riso e comemorando tantas despedidas quantas forem necessárias, sabendo da brevidade de cada uma delas.

As linhas do tecido formam uma trama forte, um verdadeiro emaranhado de ideias, complicações, sentimentos e sensações, desfiando as mazelas do cotidiano, bem como, desfilando a última moda parisiense nas calçadas.

-Que bela moda, da mais alta costura. Transformou em boneca de luxo aquela menina de porcelana arranhada.
- Que bela moda, muito mais refinada. Agora todos desejam ser menina encantada.

E o tecido fora tingido, antes mesmo da tosa, tingido pela alegria do sol, e pela seriedade da lua. Tingido pelo sorriso do campo e pelas pegadas da ovelha. Tingido pelo menino do pastoreio, que afagava aquela lã preciosa e bruta com amor. E quando a lã foi retirada da ovelha, e quando a lã foi fiada e tramada, e quando a lã virou tecido, já restava impregnada a sua cor.

Em vão tentou a costureira moldar teu corte, em vão tentou a costureira tirar-lhe a vivacidade, que sempre existiu no vestido. Ele nasceu para ser assim, vívido, radiante, contagiante. É um tecido de bolinhas, feito catapora, que adoece todos os corpos que o vestem, contaminando-os com sua alegria esporádica e frequente (ao mesmo tempo). E todos aqueles corpos enfermos, cheinhos de pintinhas, cheinhos de risinhos, cheinhos de canções e feijões mágicos, fluíam despercebidos pelo trânsito, feito epidemia, feito pandemia. Uma invasão invisível e terrível na alma humana.

E o vestido seguia pelo salão, bailando solitário, aguardando o paletó para dançar colado, aguardando que o paletó lhe trouxesse sua bebida refrescante, aguardando que o paletó (aquele paletó específico) lhe acompanhasse até o guarda-roupas para o enlace. O paletó de sarampo.


sábado, julho 20

Vira- Latas

vira-lata assistindo aula de filosofia na UEMA (Universidade estadual do MA)

Na antiguidade, esses sábios viviam como animais abandonados e vagabundos, mendigos e miseráveis sem nenhum bem. Acreditavam que o principal ensinamento que a filosofia lhes proporcionava era estar preparado para tudo na vida. Você não precisa ser exatamente pobre, mas precisa saber que é capaz de viver sem desejar o que não precisa. Eles ficaram conhecidos como "cínicos", o que literalmente significa "cães". Sempre me agradou a imagem de vira-latas pelas ruas da cidade. Quando me dou de cara com uma criatura iluminada dessas, sinto mais admiração do que pena. Não há nada mais sagrado do que a serenidade e sinceridade dos vira-latas pelas calçadas, ignorados e expulsos do mundo dos homens, mas muito mais reais do que nós, muito mais saudáveis, verdadeiros, honestos consigo mesmos e, talvez até, infinitamente mais felizes. Todo vira-lata tem algo de imortal, voraz, imprevisível - morde quando dá na telha, quando decidem que querem. Latem quando acham melhor e, sempre latem. Isso não quer dizer que não possam demonstrar paixão (em todos os sentidos da palavra) quando sentem necessidade. Alguns homens jamais chegarão aos pés dos vira-latas. Eles não possuem pátrias - vivem no mundo. Não precisam de cultura - a única verdade está no universo. Não precisam da cidade, da sociedade, da política - não possuem uma identidade social, porque não precisam disso - o mundo inteiro é o mundo. E só. Os cães dormem nas portas das igrejas e acreditam que os homens tenham construído justamente para os vira-latas relaxarem na sombra de uma laranjeira numa tarde qualquer de verão. Aí está no que a humanidade é superada mais uma vez - esse sentido de realidade está muito mais presente nos vira-latas. Também sua imunidade às besteiras humanas - não possuem esperanças de imortalidade, ambições, qualquer tipo de arte, riquezas, carreiras, ideais, ideias, ambição, deveres. Às vezes me sinto um vira-lata abandonado mas não acho ruim. Vira-latas não se lamentam, ao invés disso, nós, bons vira-latas, temos o espírito mais claro, a nossa alegria é de viver. Somos livres para sermos sós. 

sexta-feira, julho 12

Mulheres




Uma Coletânea de Histórias de Ficção que abordam a lombra que o relacionamento do sexo feminino e sexo masculino. Sabemos que isso é TUDO muito MAIS que um pau e uma xoxota.

é só fechar os olhos

quarta-feira, julho 10

Abismo

Era uma dessas padarias com mesinhas de plástico espalhadas na beira da calçada. Já estava ali quando chegamos, a padaria. Existem mais padarias assim no bairro que, inclusive, são muito maiores e mais bonitas do que essa. Pela arquitetura comum, acredito que antigamente foi uma casa e o dono havia começado pela garagem mas com o tempo, por parecer um negócio promissor e também por capricho, expandiu. Talvez este mesmo dono tenha a vendido e ido embora, pois não há, pela expressão do seu José, que é o atual dono da padaria desde que a conheci, nenhuma expressão de quem queira expandir mais ou investir nisso. Ou talvez seu José tenha sido sempre o proprietário, mas algo fez com que se acomodasse, estacionasse nesse ponto. Cansaço? A idade o teria deixado menos otimista? Ou até uma decepção amorosa, quem sabe? Eu que não sei, nunca vi seu José com mulheres nesses últimos anos que tenho freqüentado sua padaria. É uma padaria, mas é dessas que têm mesas de bilhar, café, lanches, tudo feito pelo seu dono/padeiro e mais uma funcionária que eu não sabia o nome. Estou escrevendo daqui agora, se é que já não perceberam isso. Estou esperando uma pessoa. Tenho dúvidas com relação a ela. A conheço há muito tempo, mas acredito que as dúvidas que possuo nunca irão cessar. Não apenas porque ela é mulher e todas as mulheres são ininteligíveis, porque embora geralmente não nos compreendamos, continuamos unidos por alguma vontade estranha, como se a incompreensão nos encantasse apesar de nos fazer discutir e passar raiva seguidamente. É como se ainda tivéssemos esperanças um no outro, até mesmo porque ninguém consegue desistir de um ser que é capaz de te ferir com tanta leveza, com tanta beleza. E, também, é bem verdade que não passamos todos nós de seres distantes e estranhos uns para os outros. Seguidamente nos vimos tomados por um sentimento de estar perdido num deserto de lobos uivantes. A distância entre o lobo e a lua é muito menor do que a que existe entre cada um de nós e um uivo diz um milhão de vezes mais do que um poema. Enfim, não digo isso por rancor, até mesmo porque jamais pensei em sentir algo negativo em relação a ela. Outro dia, nesse mesmo lugar, ela chegou e sentou-se enquanto continuei lendo um livro de receitas em espanhol, sei que é estranho mas passei a tarde toda entretido naquilo e, sem parar de ler, a ouvi colocando as duas mãos cruzadas na mesa e dizer:

- Quem será que inventou a palavra “abismo”?
- Como assim? - respondi sem tirar o olhar do livro.
- Uma vez eu viajei de carona pela América do Sul. Acontece que foi uma idéia imbecil demais. Quando cheguei na Colômbia estava doente, faminta e falida. Caminhei 4 kilômetros por uma auto-estrada na serra cheia de neblina por todo lado, curvas e mais curvas -- que, somadas ao meu estado, me torturavam ainda mais, eu ficava tonta e as vezes me esquecia de quem era. Bem, não sei direito o que aconteceu naquela noite, só sei que a coisa seguinte que me lembro era de já estar de carona numa Kombi de estudantes que estavam em viagem por ali. Desci, a salvo, na rodoviária e voltei para casa.
- E não lembra de nada que aconteceu entre a neblina e tal?
- Branco total.
- Acho que isso deve ser normal.
- Bem, sei lá. Só sei que ontem sonhei que estava naquele mesmo lugar e subi na mureta de concreto que separava a estrada de um abismo enorme e sem fundo, olhava para baixo e tudo era tão escuro, mas não um escuro qualquer, como a sombra duma árvore numa noite de carnaval, mas um escuro vivo, que se movia e parecia possuir personalidade própria, como um ser, como o escuro que fica dentro de uma casa abandonada no tempo, como aquele que fica debaixo da nossa cama quando a gente é criança, é diferente de qualquer outro escuro. Eu me inclinei tanto que era impossível não estar sonhando. Eu estava de pé, mas na horizontal, como se a gravidade não existisse mais e eu estivesse nos braços do abismo vivo, que me abraçava e me beijava de língua. Então acordei. Arrumei o cabelo, escovei os dentes, lavei o rosto, tomei um banho, vim para cá e agora nada mais faz sentido. Não que seja O SONHO o culpado disso tudo, pois é só um sintoma. Um sintoma de que mais nada tem feito sentido. As vezes me dou com uma esquina e sinto vontade de sair correndo. E você aí com esse livro, sei que está me escutando. É tão estranho, porque é a única pessoa que sei que está me escutando quando falo e isso é muito raro. É como se as outras me dessem o olhar, as mãos, o tempo, menos os ouvidos.

Fechei o livro. Ela parecia tomada por um desespero absoluto mas concentrado -- o que pode parecer estranho, porque é possível que algumas pessoas pensem que todo desespero é explosivo e incandescente. E com certeza essas pessoas não conhecem o desespero. Pedimos dois cafés. Continuei em silêncio com a xícara na mão, analisando os desenhos da cerâmica. Parecia uma xícara caseira, branca com flores desenhadas em tons de rosa, violeta e verde-escuro, mas já desbotados. Talvez eu também estivesse desesperado. Essa era minha forma de desespero. Depois, seguimos para casa e até nos damos as mãos no meio da rua...

- O desespero passou -- disse um de nós, só não lembro quem. E o outro respondeu:
- É.

Caímos na cama e ficamos olhando pela janela, chegava o meio dia.

- Tá vendo? -- eu disse.
- O quê?
- O céu.
- Tô.
- O céu é um abismo lindo.

segunda-feira, julho 8

Sem Pé nem Cabeça ( The Thomas - Tammys Loyola)

Pede pra mim
que eu te convenço a sair
mesmo com teu quarto assim
tão desarrumado

Pensemos depois
largar tudo e caminhar sem medo
sabemos que não temos segredos
Além de nós dois

Já são três da manhã,
jajá desembarco
Façamos um trato
de buscar bons ares

E jamais se esqueça,
na nossa bagunça a gente se arruma

Sem pé nem cabeça,
fazer coisa alguma, pensar e agir

Sem nenhuma certeza,
Serei seu herói, seu valente cowboy

E você, minha princesa,
Mas faça o favor de aceitar os clichês

Não, não vamos voltar
Eu posso morrer antes de acabar

E se o tanque esgotar
Eu pago o teu táxi de volta pra lá

Eu só quero acordar
Descobrir o teu rosto do lado de cá

Mas quando você me chamar
Prometo que volto só pra te buscar



domingo, julho 7

Domicílio






Sub-Produto do Rock

Mamãe tá certo
Eu me dei mal na escola
Isso acontece
Mês que vem eu melhoro
Mamãe tá certo eu pisei na bola
Quebrei vidraça
Fiz a maior pirraça
Mamãe tá certo
Eu fui pro fundo e não pode
O mar tá bravo, que bode!
Pode cortar
Televisão e vitrola
Parar o jogo
Você é a dona da bola
Só não me xingue, só não me xingue
De sub sub sub sub sub
O quê?
Só não me xingue, só não me xingue
De sub sub sub sub sub
O quê?
Subproduto de rock
Será um tipo de nhoque?
Subproduto de rock
Alguém me dê um toque
O que é que quer dizer?

terça-feira, julho 2

Reflexos


A minha vida é como uma sala de espelhos, dessas que têm em parques de diversões, com muitos espelhos que te engrandecem, encolhem, emagrecem, engordam. Espelhos líquidos, em que se deve ter a cautela de não encostar, caso em que poderá (sem querer) cair do outro lado. Não se saberá o que é real, e o que é fruto da imaginação.

E a cada espelho me enxergo diferente, ora mais econômica, ora maior. Assim como minha imaginação, ora águia, ora pardal. Mas sempre criando por aí, sonhando, desenhando belos olhos num pedaço de papel. E por esses olhos que desenho que enxergo o mundo, do outro lado do espelho, e vejo o mundo em cores inexistentes no mundo real, cuja frequência é imperceptível ao cérebro humano. Mas apenas visualmente imperceptíveis, dado que no lado real do espelho se percebe o tato e o olfato, apenas com outros sentidos.

Desta forma somos reflexos de nossas percepções, dos nossos sentidos e dos nossos sentimentos. E somos espelhados, frutos de tais reflexos, nas ações e nas palavras que cotidianamente exprimimos um pouco mais a cada dia. E somos reféns, das consequências das ações e das promessas ditas em razão dos tais reflexos. Escolhas feitas de forma intensa e sob circunstâncias únicas, visando tornarmos reféns de uma situação pretendida há muito.

Por assim, torna-se refém da própria liberdade, antes uma imposição, mas agora uma escolha. A liberdade consiste nas escolhas. E hoje em dia podemos escolher tudo, o que dizer, o que comprar, para onde ir, e para qual espelho olhar. A língua italiana tem um verbo fabuloso, specchiare, que significa exatamente se olhar no espelho.  E eu me specchio todos os dias, apreciando as mudanças que causei, e me deleitando com a coautoria do meu próprio reflexo.

E o que é real? E o que é imaginário? Já não posso mais dizer, ambos planos se fundiram, formando um mundo só, o meu. Procuro com delicadeza aprender a distinguir o que existe daquilo que criei, e sigo como Ismália.

segunda-feira, julho 1

22:35

minha garganta inflamada,
me dá um certo gosto de finitude e humanidade.

nada mais banal...

estudantes de psicologia,
filosofia, medicina,
faxineiros, 
a crente da igreja,
policias, trombadinhas e pedintes no trem...

todos nós ignoramos,
e uma hora outra nos inflama qualquer na garganta.

e tanto faz a ideologia de merda que escolher.

crer  ferozmente no darwinismo social,
ou guiar-se
ingenuamente por qualquer marxismo deturpado...

você pode pensar no mundo como uma farsa,
e ignorar  a problemática de sê-la também.

não me faz diferença...

o que temos além da realidade do despertador,
das aulas chatas de terça,
balcões de lanchonete,
escolas e vielas?...

a garota que você amou ano passado,
o seu cachorro atropelado, 
os livros e arquivos no pc,
o chefe
a mulher que te vende sanduíche,

tudo isso é muito mais do que poderia ter.

não nos possuímos, a nós mesmo.

não; não possuímos. e só, nos possuímos.

e não há  amor, 
ciência,
fé ou poesia,
que nos redima do que somos.

tomo um remédio,
e escrevo...

porque não há o que redimir, afinal...

simplesmente, não há.