segunda-feira, outubro 3

crazis

COURS DE FRANÇAIS

Uma das minha características principais é ser um bom ouvinte. Parece mágica, mas as pessoas me olham e, simplesmente, começam a falar de suas vidas, dificuldades em se manter, pretensões acadêmicas ou mercadológicas, relação com os pais, com os cônjugues, com o que ou quem quer que seja. O que importa é se, desde que haja um problema, aqui estou eu para ouvir.
Bela merda.
No entanto, ao longo do tempo, acabei desenvolvendo um sistema que consiste em escutar sem ouvir, já que uma das minhas virtudes é ser egoísta, na verdade, todos o são, mas o egoísmo é como uma frequência de rádio, prevalace aquele que a tem mais alta. Logo, para que não haja conflitos e como minha falta (ou excesso) de caráter não me permite dar a devida atenção, optei por dissumulá-la.   
O que será relatado aqui é meramente um exemplo, ficcional, obviamente, mas o que importa é a função ilustrativa e, se esse caso for real, quero dizer, se perceberem alguma verossimilhança, será certamente uma impressão equivocada, uma interpretação disgressiva e, claro, no caso de algum processo judicial, um grande mal entendido das partes relacionadas e a prova definitiva de que a literatura é uma coisa fantástica.

***
... Quase toda besteira que um homem faz tem como ponto de partida uma mulher. Essa narração não poderia ser diferente. E foi depois de saturados dois anos de namoro que fui perceber que meus ouvidos eram adestrados e que minha cara poderia expressar uma coisa enquanto meus pensamentos se direcionavam para outra, no caso em questão, aos verbos do francês, a parte mais difícil da língua, em minha opinião, tipo de coisa que só entra na cabeça às custas da repetição exaustiva, como um prego que só se crava na madeira através de marteladas.

ELLE - … Não sei. Não gosto muito do meu curso, sabe? Não tem muito a ver comigo... Gosto de cinema... cinema é legal... já viu aquele filme da espera do ônibus?.... Porra, muito engraçado... Eu tenho um filme, aliás, tenho um monte de filme na cabeça. Só curta metragem, assim, de um minuto...
LUI - Je prends, tu prends, il prend, nous prenons, vous prenez, ils...Não sei qual é a terceira pessoa do plural do verbo prendre... deixe-me ver... Ils prisent... Não, não é isso... Será que ele retoma o radical do singular? Ils prendent... também não, puta que pariu...
ELLE - O que que tu acha?...
LUI - Porra, um pouco difícil...
ELLE - Pois é! Mas tem uma galera fazendo... Só filme besta... Se eu tivesse uma câmera...
LUI - Ils prennnent! é isso! Eu sabia!
ELLE - Cinema só faz quem tem recurso, não é?...
LUI - Claro! Sempre foi assim...

Concordar com tudo é a chave para uma boa conversação. Mas não se trata de um concordar monossilábico. É preciso dinâmica. Entender os pontos chaves. As articulações do discurso e daí lançar algumas perguntas, pois, quando interrogamos a pessoa, demostramos imediatamente interresse pelo assunto. O importante é fazer a pessoa falar e a ferramenta para isso é dar subsídios para que ela desenvolva a argumentação. Perguntar é essencial, melhor do que dar opiniões. O posicionamento inadvertido pode gerar um debate, e para o bom ouvinte, debater é a última opção...

ELLE - Ainda não consegui achar um tema para minha monografia. Quero falar sobre poesia mas...

LUI - No subjuntivo, é só pegar o radical da terceira pessoal do plural e tacar a terminação do presente do indicativo... Que je prenne, que tu prennes, que il prenne, que nous prennons... Não... tá errado... Alguma coisa muda aqui no nous... O sufixo é outro... Não é assim...Quer saber? Vou mudar de verbo, talvez assim acerte...

ELLE - … O que penso é muito abragente. Já li uns dois ou três livros, mas nada trata do que eu quero abordar...

LUI - Tu já tentou mudar de verbo... quer dizer, de tema?

ELLE - Vixe! Um monte de vezes! Mas não gosto de nada que encontro... sobretudo linguística, detesto linguística! Parece que todo mundo que faz letras só quer falar sobre linguístíca?!

LUI - Je sais...

ELLE - O quê tu disse?

LUI - Ô! estou pensando alto... Je sais é eu sei em francês!

ELLE - É uma língua tão bonita, o francês...

LUI - Je sais, tu sais, il sait, nous savons, vous savez, ils savent...

ELLE - Queria aprender um dia. Acho que vou me inscrever ano que vem...

LUI - Cansei do presente... Vou conjugar no futuro... Tem uns dez ou nove verbos irregulares. O francês é foda, toda hora uma exceção...

ELLE - O curso é caro não é?

LUI – Sempre tem exceções...

ELLE – Como assim...

LUI – Quer aprender comigo?

ELLE - Sempre falas isso e nunca me ensina...

LUI - O verbo vir no futuro, seria je viendrai, tu viendras, il viendra... nous... nous... Sempre no plural é eu engato. Quando eu vou sair do nous? Puta que pariu outra vez...

ELLE - Vamos começar? Falando sério...

LUI – Nous?... Nós?

ELLE – Sim!

LUI - Quando?

ELLE – Hoje...

LUI - Hoje não...

ELLE - ...

Não... Essa pausa não é um bom sinal. Para quem ouve, mesmo que cinicamente, o silêncio é um inferno. O buraco ocasional no meio da conversação é sintoma da falta de assunto. Não há mais verbos para conjugar.  Agora preciso de uma ação. É necessário algum comentário. Nada brutal. Se eu não tomar cuidado, posso tomar as rédias da conversação. Nesse ponto, é preciso agir com cautela praticamente cirúrgica. Com o olhar perdido, fito ao chão,  máquino como um condenado. Ela não sabe que na hora em que menos fala é o instante em que mais presto atenção.  Ouvi os outros, terapeuticamente falando, é uma maneira de não me escutar, de não recair naqueles pensamentos recorrentes e de caráter crônico, é a chance que tenho de pensar apenas em trivialidades de ordem não existencial. É por isso que assunto nunca deve morrer.
 


LUI - Não te preocupa...

ELLE - ...

LUI - No futuro nós falaremos a mesma língua...

ELLE - Tu é só conversa...

A conversa engrenou. O tempo passa. Papo vai, papo vem. Falamos de tudo um pouco. Eu a escuto. Agora tranquilo.  Às vezes paro simplesmente de pensar. Fico olhando sua boca abrindo e fechando, como se não houvesse volume e seu rosto fosse como a televisão ligada no mute, embora quem de fato está calado seja eu. Fixando meu olhar em seu rosto, reparo o quanto ele é bonito, que tu es belle!, e ao mesmo tempo, o quanto as palavras não tem forma física e confundem imediatamente com o ar. Ouvir é uma espécie de ócio, dependendo da metodologia que se usa, faz refletir. Serve para que recapitulemos algumas coisas perdidas, da poesia presente no cotidiano à conjugação inconstante do verbo aller que só parece regular quando está no pretérito imperfeito. J'allais, tu allais, il allait, elle... 

Na despedida, ela me toma as mãos de repente. Sorrindo, então, ela me diz:
- Você é um bom ouvinte, sabia?

Acolho o elogio com carinho. Embora seja a irônia o plano de fundo de toda encenação bem sucedida.