quarta-feira, maio 30

o DIA em que FINALMENTE vi um deus

Mari Rodrigues



Tem gente procurando deus de tudo que é jeito, caminhando em procissão, de joelhos em oração, separado do mundo em mosteiros, com a mão acima da cabeça por anos. Comigo sempre foi um pouco diferente. A primeira vez que quase vi deus foi em Santo Amaro da Purificação na Bahia. Isso porque quando criança meus pais partiram em retirada do Maranhão rumo à Bahia por conta de uma transferência de trabalho que o sujeito que cedeu o espermatozoide à minha mãe para que eu nascesse havia sofrido. Vida nova, cidade nova e família feliz era mais ou menos o retrato da minha família naqueles dias de mudança.



Chegando em Santo Amaro da Purificação, que assim como todas as cidades bahianas, fica ali próximo à Feira de Santana, percebemos um mundo completamente diferente do nosso em diversos aspectos. Se tratava de um povo extremamente religioso, mas era uma religião completamente diferente da nossa, a proporção era mais ou menos de uma casa de candomblé para cada três casas de moradores. O povo quase que em sua totalidade era realmente negro, tanto que lembro até hoje dos preconceitos sofridos na escola por acharem que era branca só por ter a cor da pele indefinida (nem branca, nem negra) e um tal de “parda” na certidão de nascimento.
Falando em escola, além dos preconceitos vivi muita coisa boa no jardim de infância bahiano. Uma dessas coisas boas foi aprender o ABC do jeito sertanejo e quando voltei pro Maranhão deixar a professora enlouquecida sem entender porque uma menina, segundo ela tão inteligente, insistia em falar “lê” ao invés de “L”, “mê” ao invés de “M”, “nê”, “gê”... Foi um bom trabalho e outras tantas zoações dos coleguinhas até conseguir pronunciar o alfabeto formal.
Mas, fora o alfabeto sertanejo ter sido o meu primeiro contato com a nossa língua, das coisas boas lembro muito do simbólico desfile das estações. Foram lá escolher as meninas da escola que sairiam na frente dos coleguinhas, cada uma representando uma estação do ano. Eu, a “menina branca”, fui escolhida e obviamente não podia ser pra outra estação que não fosse... o outono. O verão e a primavera ficaram com duas meninas negras e lindas, e obviamente que ninguém queria ser o inverno e o outono o que justifica a “escolha” que fizeram por mim. A propósito, não fiquei com o inverno porque tinha outra menina que conseguia ser mais “branca” que eu e que também tinha parado na cidade da mesma forma que eu, o pai dela era colega de trabalho do pai biológico que eu tinha até então.
Aquele dia foi muito engraçado. Lembro do desfile, do vestidinho branco, das meias e luvas de crochê feitas pela minha mãe e da cômica cestinha de frutas de plástico que eu carregava.
Em Santo Amaro da Purificação tudo era motivo para grandes festas, sempre regadas a muita comida, em especial acarajé, muita bebida, muitos fogos. Nessas festas era o momento em que todo mundo, negros, “brancos”, chefes e empregados estavam juntos em prol de muita alegria, muito sorriso, independente do que reservasse para ambos o dia seguinte.
Um das grandes festas da cidade era a comemoração do aniversário da Dona Canô, a mãe do Caetano Veloso e Maria Bethânia. Era mais ou menos uns 7 dias de festas. Entre ritos religiosos, busca por deuses, shows com os filhos e amigos dos filhos. Entre esses amigos lá estava um dos meus deuses, Chico Buarque de Holanda, filho do Brasil, voz fanha, letras belíssimas, uma capacidade de renovação no que diz respeito à composição impressionante e que era sempre um dos convidados da festa.
Em uma das noites de festa haveria uma missa, que longe das comuns missas católicas, pois possuía um sincretismo religiosos indescritível e que eu não saberia descrever hoje porque na época eu tinha apenas 5 anos de idade, porém lembro de  muita coisa que vi enquanto morávamos em Santo Amaro e que só fez sentido depois que eu entendi o que é sincretismo religioso.
Então, minha mãe havia sido, assim como o Chico, convidada para missa da Dona Canô e eu já estava me arrumando quando ela resolveu que o dia estava muito frio pra me levar (Como pode furtar o frio da rainha do outono da escola?). E lá foi minha mãe pra missa da Dona Canô, se deu conta de que estava sentada na mesma fila que aquele cantor que quase foi pego pela ditadura, mas nem se deu conta de que estava ao lado de deus. E eu nunca vou perdoá-la por não ter me levado pra segurar a mãe
dele aquele dia.
A segunda vez que estive próxima desse deus já tinha me esquecido da ausência na missa da Dona Canô. Já havíamos voltado pro Maranhão, eu já tinha aprendido o alfabeto formal e outras cositas más. Já era a época em que conseguia livros do lixo de um juiz para o qual mamãe trabalhava. Já não tinha o que fazer durante as férias, então lia todos os textos da sessão “interpretação textual” dos livros didáticos entregues pelas escolas públicas nas quais eu estudava e quando o texto ia ser trabalhado em sala de aula, algumas vezes eu já tinha até respondido as questões propostas.
Justo aquele texto eu não tinha lido direito, tinha entendido pouco, mas lembro muito bem da professora de português da sexta série tentando cantarolar “agora eu era o herói e meu cavalo só falava inglês. A noiva do cowboy era você além das outras três”. Lembro dela falando que era de um grande músico e escritor brasileiro e lembro que me apaixonei por esse texto. Li, reli e tudo que eu queria era um dia escrever algo próximo daquilo. Nem sabia direito o que era escrever, mas eu queria fazer isso um dia.
Passados mais alguns anos, conheci a voz, as letras e as mensagens desse deus. O amor cresceu. A vontade de escrever algo parecido com aquilo perdurou, mas a certeza realista de que só os gênios conseguem isso venho junto com o passar dos anos. Restou a teimosia imperante em alguns seres, e assim eu continuo tentando.
De todo modo, eu continuava sem conseguir ver esse deus. Porque sempre que ele resolvia dar o ar da graça aos reles mortais, a graça era distribuída em lugares bem distantes do Maranhão e quando eu lembrava que ele sempre estava aparecia em Santo Amaro da Purificação me enfurecia por não ter continuado com meu alfabeto sertanejo e com o rótulo da pele “branca”. Até que esse ano ele resolveu passear pelo Brasil distribuindo simpatia e eu comecei a ver a possibilidade de finalmente ver esse deus. E reservei um dia pra ver. E fui ver.

Foram 60 minutos de voo atrasado. Duas horas de fila e mais 90 minutos de espera pela entrada dele no salão. Até o seu balançar de braços magros rumo ao microfone, em minha cabeça a ficha de que eu ali estava ainda não havia caído. Mas, quando ele começou a cantar as coisas começaram a se organizar nas ideias e era verdade... Estávamos depois de alguns bons anos dividindo o mesmo espaço. A voz fica embargada nas 5 primeiras canções, é impossível cantar, gritar, chorar. As reações são estranhas por demais. Já sabia que ele não era de falar no palco, é um deus tímido, mas estando lá percebi que ele não precisa falar nada no palco, as canções e os também tímidos sorrisos falam por ele, nos dizem “que bom que vocês vieram”, “que bom que gostaram dessa música”. Lá pela sexta canção eu já conseguia acompanhar a voz técnica desse deus, com muitas marcas do tempo, bem diferente dos DVD’s que tenho dele em casa. É um deus, mas é igualzinho a mim, sofre com o tempo, precisa beber água entre as canções, esquece uma letra, precisa da ajuda do colega pra lembrar, também se emociona com o coro que canta bem alto uma das suas músicas. A diferença entre nós está na genialidade, a diferença entre esse deus e qualquer outro possivelmente está na inacessibilidade que alguns deuses podem ter, que não é o caso deste.
Tem muita gente que busca deus ou deuses de formas distintas, assim como os moradores de Santo Amaro da Purificação, como Dona Canô, como o próprio Chico. Eu também já tive meus meios de procura, a última forma custou até barato, consegui uma promoção aérea e o ingresso mais barato. A diferença é que o último deus que procurei era questão de tempo e espaço para eu encontrar. Minha mãe que antes eu não perdoava por ter me furtado pegar na mão dele, me ajudou a trazer graça para a história e esperar pelo dia que ele chamasse meu nome lá no palco através de uma de suas canções. O fato é que a certeza do encontro com o deus Chico eu já tinha. Para os demais deuses a certeza do encontro e da possibilidade de ouvi-los chamar meu nome ainda é inacessível.


4 comentários:

Anônimo disse...

O Quarto da Mari continua cheio de surpresas, deve ter alguma passagem secreta pra lá. Como sempre very good!!


Natan Castro.

Anônimo disse...

Mari,mais uma Crônica embriagante. O envolvimento da gente com aquilo que tu escreve é tudo mesmo. Acho que deve ser pela veracidade dos fatos, e pela maneira com tu os descreve. São situações e sentimentos sonhados, e depois vividos por ti.Já estamos aguardando a próxima.Ana Lú RS

Su disse...

Compartilhamos a crença no mesmo Deus =D

germanomundo disse...

Tem uma frase de uma música que diz "Sonhos são como deuses
Quando não se acredita neles, deixam de existir"...
Muito lindo texto Mari, sei muito bem o que é morar em "terra estrangeira" dentro de Brasilzão. Beijos