sexta-feira, maio 11

eXpurGo - EPISÓDIO 2


– Pois é, respondeu o soldado Égido, não podendo evitar que um começo de lágrima lhe umedecesse os olhos. Miguel, vendo aquele olhar, disse:
– Valeu a pena levar essa surra só pra ver esse seu olhar de pena, disse Miguel.
– Você gosta que as pessoas sintam pena de você?
– Caralho, mesmo tendo largado o curso de psicologia – Miguel tosse e cospe mais sangue – mesmo tendo largado a porra da psicologia, você não perdeu essa mania de analisar os outros e essa incapacidade de se analisar a si mesmo, o que eu disse não tem nada a ver com as pessoas, mas com você, eu quis dizer que, se você ainda é capaz de sentir pena, é porque ainda é capaz de sentir alguma coisa boa, exatamente como o menino gentil e cordato que eu conheci e que tanto amei, ou seja, você ainda é capaz de amar, mas confesso que estou um pouco chocado – nova pausa para mais tosse e mais sangue cuspido – de ver aquele que eu pateticamente cria ser o amor da minha vida espancando seres humanos como meio de vida.


– Eu nunca espanquei ninguém, hoje é minha primeira ronda.
– Ah, seu batismo de fogo, então! Aposto que vão botar você pra me bater e me foder, não que você já não tenha feito as duas coisas antes, e com ou sem o meu consentimento, mas, se hoje eu gemer de prazer com todos, não se ofenda, você conhece minha mente diabólica.

– Pára de brincadeira, Miguel, isso não tem graça nenhuma.
– Se eu, que devo estar com umas oito costelas quebradas, e tô com o nariz sangrando, cuspindo dentes, ainda consigo fazer piada – ele pára de falar para ter uma crise de tosse, após a qual Égido o abraça pela cabeça, o sangue de Miguel mancha o queixo mal-barbeado do cabo, que, beijando os cabelos de Miguel, fala:
– Shhhhhh, vou tirar você daqui, vai ficar tudo bem.
– Vai mesmo? – respondeu Miguel enquanto empurrava suavemente o soldado para longe de si. Será, meu caro Égido, que vai ficar tudo bem? Eu acho que não – tosse e cospe sangue – não enquanto monstros como esses continuarem à solta, apedrejando michês a tijoladas, violentando travestis e espancando todo o resto de nós, pior ainda quando um de nós monta guarda e assiste tudo calado.
– Um de nós, quem, perguntou ofendido Égido.
– Um de nós, gays, porra!
– Mas eu já te disse que – Miguel fala a próxima frase junto com ele, mas num tom desdenhoso e jocoso – “eu não sou gay”. Miguel depois continua:
– Por favor, não vamos entrar nessa querela novamente, você sabe que é o que é, mesmo que, para que você possa encontrar algum tipo bizarro de paz que eu não quero, você tenha que dizer que não é o que é, baseando-se, para tanto, em silogismos estúpidos como “eu só meto, e, como quem só mete não é gay, logo, não sou gay”, mas aí é que vocês se enganam, já que a segunda premissa é falsa. Não adianta nada o cara ficar se privando do prazer supremo de ser penetrado por outra cara, em nome de poder deitar a cabeça no travesseiro com a consciência tranqüila por achar que, porque ele não dá o rabo, não precisa se rotular gay, se, para ele ficar de pau duro, basta ele dar tipo uma relada num rabo de macho, assim, sem querer, como numa encoxada semi-involuntária num vagão lotado de metrô, isso também é ser gay, meu amigo, não adianta nada ele casar com uma rachada, como você, ter filhos indisciplinados, como você, assumir um emprego degradante para sustentar essa família sacrée, como você, se no fundo, no fundo, tudo o que ele quer é uma oportunidade de ficar, ainda como você, uma horinha que seja, entre quatro paredes, a sós com outro garoto, mesmo que seja só fazendo o papel de machão-que-faz-de-conta-que-nem-está-ali-e-deixa-para-a-bicha-o-trabalho-de-chupar-e-de-dar-o-cú, ou, por outro lado, se entregando de cabeça e fazendo participativamente todas aquelas coisas tão simples, tão gostosas e tão inomináveis que dois garotos podem fazer a sós, entre quatro paredes, ou ao ar livre, se for o caso, como nós naquela praia, lembra?

A lembrança daquela noite na praia, a primeira vez deles, recaiu sobre eles na forma de um silêncio sobre o qual pesava o ar abafado do banheiro, pelo qual se misturavam os odores típicos de urina, suor e fezes, e, lá no final, um resto do cheiro de maconha do baseado que Miguel havia derrubado depois de haver levado o primeiro tapa, traiçoeiro, pelas costas, e que havia continuado a queimar no chão enquanto Miguel era agarrado, jogado contra a parede e espancado violentamente por três policiais militares, com seu namorado, aquele que pateticamente cria que Miguel era o amor de sua vida, seja lá o que diabos isso queira dizer, com seu namorado, dizíamos, fugindo por aquele basculante quebrado da janela do banheiro. O beque havia continuado a queimar lentamente no chão até que, cansada de esperar que alguém viesse, desse um trago e reavivasse a combustão, a brasa acabou por extinguir-se completamente, exatamente como acontece com as grandes paixões. Notando o beque no chão, Miguel, também no chão, se estica para pegá-lo.

– Olha só o que os seus amigos esqueceram.

Miguel então reacende o baseado com o isqueiro Zippo prateado que trazia no bolso e que lhe havia sido dado de presente por Égido, num momento perdido para sempre e que agora parecia ter ocorrido há zilhões de anos atrás, é incrível como um objeto tão prosaico como um isqueiro pode evocar tantas lembranças. Finalmente, Miguel disse, enquanto se recostava na parede e soltava a fumaça do baseado:

– Pois é, meu amigo, o que eu tô querendo dizer é que, enquanto os gays não puderem andar tranqüilamente pela rua sem o temor de levar um anátema, um dedo apontado para si, um riso debochado na cara, ou uma agressão física, causados pelo simples fato de o gay não foder como fode a maioria das pessoas ditas “normais”, entre grossíssimas aspas, então, de nada adiantarão os estatutos de união estável e quaisquer outros regimentos legais que venham a salvaguardar os direitos divinos dos gays, que deveriam poder usufruir deles sem trauma, nem vergonha, isto é, o direito à felação, à luta-de-espadas, ao sessenta-e-nove, ao fio-terra, à sodomia, ao cunilingus, esse último no caso das meninas, que cunilingus não tem nada a ver com o que os leitores que não têm conhecimentos de latim possam estar pensando, isso aí, na verdade, é conhecido pelo termo técnico de anilingus, ou, popularmente, fredê-rose, enfim, o direito ao livre-exercício de práticas sexuais interditas pelas igrejas católicas, universais, pentecostais e não-pentecostais, aos seus rebanhos, coletivo mais que apropriado para designar essas aglomerações de pessoas que vivem de fato como ovelhas à espera da tosquia. Enquanto um gay ainda provocar, mesmo no mais progressista dos pais e mães, um sentimento de frustração, de “onde foi que eu errei?”, enquanto um gay ainda tiver que experimentar uma angústia inexprimível diante da escolha, viu, mãe, é de uma escolha que estamos falando, esse negócio de opção sexual não existe, isso é coisa inventada por vocês, heteros, na tentativa vã de entender o que simplesmente não carece de explicação, como gregos inventando deuses para explicar a beleza da chuva, como eu dizia, mãe, é de uma escolha que estamos falando, e não uma opção, porque opções as temos duas, justamente entre as quais pende a escolha, sair ou não do armário, enquanto esse maldito armário ainda existir, realmente, será necessário muita filosofia, mas filosofia a marteladas, frise-se bem, muita filosofia a marteladas para arrombar as portas desse armário e estraçalhá-lo todo e reduzi-lo a pó, tem muita filosofia aí, como a platônica, ou, pior ainda, a kantiana, que, não só não liberta da caverna, como faz é prender mais ainda o gay ao armário, amolecendo a sua vontade e anulando sua capacidade de reação, por isso é que se vê por aí essas bichinhas de ar tímido, de pesados óculos, cheias de livros embaixo do braço, de chinelinho de dedo, prontas para serem simplesmente deletadas da face da terra caso um homófoba mais irado cruze seu caminho de pit-bull em punho, tomara que essas bichinhas, ao lerem esses contos, aprendam a reagir, não tô dizendo que vocês têm que sair por aí quebrando todo mundo com soco inglês que nem o pirado do Luisinho, ou com extintor de incêndio, como o mais pirado ainda do Adenílson (como verão nos contos posteriores), mas qualquer coisa é melhor do que aceitar calado insultos e agressões.

– Você acabou de levar uma surra e não esboçou nenhuma reação, disse o soldado, ao que Miguel respondeu ironicamente:
– Alô-ôu?! Só sendo mestre de capoeira, e dos bons, pra escapar de uma dessas, afinal, eram três contra um, ou quatro contra um, na verdade, conto mesmo é como se fossem cinco contra um, já que você ficou parado sem fazer nada, a cumplicidade também é crime.

Égido até abriu a boca para responder, mas Miguel olhou pra ele fazendo um gesto debochado, um olhar blasé e uma espécie cínica de gemido que, combinados, queriam dizer “nem comece!”, e o soldado, diante da inutilidade de qualquer defesa, se calou. Durante esse texto todo, o baseado foi queimando, rolando de uma boca a outra, pois o soldado também era chegado em “fazer a cabeça”. Quando o beque chegou ao final, Miguel já havia terminado de fazer seu longo discurso, e um silêncio agora ocupava o tempo que até então havia sido preenchido com fumaça e palavras...

CONTINUA...

Um comentário:

joakingson disse...

Editor, te liga: Esse é o 2º episódio do conto Expurgo, que faz parte da série A Filosofia no Armário!