terça-feira, julho 26

Recorte

Estaria no lugar certo? Duvidou por alguns instantes. A confirmação dera-se pela presença dele, ou deles, já não tinha certeza se era um, ou alguns, mas duvidou que fossem todos. Havia se preparado para aquele momento, já sabia que encontraria hostilidade e simpatia. Serviu-se da simpatia dos garçons: uísque com algumas pedras de gelo, e aguçou hostilidades dos demais depois da segunda dose. Sim, ela preferia uísque, forte, ácido, antídoto perfeito para suportar aquela noite venenosa.

As palavras fluíam através de sua voz segura e agradável enquanto o choro do malte parecia incomodar o passeio que os demais realizavam pela carta de vinho. Na curva, ela e seu copo. Silenciou-se.

A noite prosseguia aborrecida com as conversas que calavam a música entre pessoas e garrafas vazias. Os brindes eram inexistentes, até o santo fora esquecido. Este não saberia apreciar o vinho, escolher a safra, seguir os rituais catedráticos das vinícolas, como cheirar a rolha, segurar a taça com maestria, sacudindo-a antes de sentir o aroma e enfim degustar. Jamais derramariam o do santo no chão. Lugar luxuoso, ambiente inóspito e pessoas indiferentes. De fato o santo estaria nos botequins com os passarinhos e suas águas entre poesias, cheiros e sabores.

Na terceira dose, o gelo beijava-a com doçura tocando-lhe os lábios. O copo demorava cada vez mais a retornar a mesa, enquanto as sinuosas taças de vinho, abandonadas, soberbamente, o observava. Estariam elas enciumadas por não serem tocadas, por não sentirem o calor daquela boca, a maciez de suas mãos, e, sobretudo a admiração dos seus olhos? Permaneceu em silêncio. O malte percorria suas veias provocando-lhe um leve torpor pelas frágeis palavras que circundavam aquela mesa quadra. Entre uma dose e outra, água... talvez o que de mais puro houvesse entre a mesa e as cadeiras, o gelo não, esse se misturava ao malte e continuava a furta-lhe beijos cada vez mais ousados chegando a tocar a ponta de sua língua macia...assim como seus lábios. A língua já não se continha, desfilava sensual sobre os lábios sugando o malte que escapara do copo deixando rastros em sua boca... Já estava na quarta dose.

Garrafas vazias sobre a mesa, muitas pessoas vazias sobre as cadeiras cenário perfeito para a  futilidade proporcional ao preço do vinho consumido e apreciado com refinamento. As taças suntuosas inquietaram-se. Frases suicidas começaram a ser vomitadas sobre a mesa. Ela, impávida, ouvia, embora tentasse se distrair com o gelo que nadava no uísque.

A primeira frase cortou-lhe os pulsos, não acreditava estar ali. Recolhera as mãos. O gelo sozinho continuava o movimento. A segunda a asfixiara. Passou a mão direita pelo pescoço como se procurasse a corrente inexistente para se enforcar, como não percebera isso antes? A terceira, uma adaga no coração! A mão escorregara pelo decote chegando a tocar o próprio seio na tentativa de estancar o sangue que se espalhara em todo o ambiente, o que lhe segurava? O despedaçar da taça de uma mesa vizinha, a trouxe de volta. Os cacos estavam espalhados por todos os lados.

As taças vazias sorriam e espelhavam seu rosto incrédulo. O lápis preto que contornava perfeitamente seus olhos poderia saltar em linha enquanto sua língua sarcástica costurava a boca de algumas pessoas num esforço sobre humano de lhes fazer um favor, era como se prendesse o botão que fugira de sua casa para nunca mais sair.

Bebida e inteligência; aperitivo e prato principal; um estimulante, o outro afrodisíaco, juntos, potencialmente destrutivos, sobretudo na presença de desconhecidos. Ela sutilmente sedutora e fatalmente educada. Levantou-se bruscamente sob o olhar controlador das taças, beijou o gelo longamente, pegou a bolsa que dormia sobre a mesa e pediu licença.As cadeiras arrilhiaram-se. Era possível ouvir o burburinho das taças. Caminhou lentamente e sem dizer nada a ninguém, abriu a porta da gaiola de ouro e foi em busca dos passarinhos, de suas águas e de todos os santos.

O silêncio trincou as taças. Nada a segurou, nem o copo de uísque. O gelo derretera.


Alice Nascimento

alice por alice

2 comentários:

Anônimo disse...

uau...q coisa quente

Anônimo disse...

Lika que lindo agora dá para ler. E que decote. Deinha