Quem nunca esteve em uma escola pública na hora do intervalo não sabe o que é barulho de verdade. A primeira vez que ouvi e participei de uma zoada como essa eu tinha 6 anos de idade e estava lá porque a crise matrimonial e separação dos meus pais começavam a repercutir em minha vida, mesmo que eu não fizesse ideia na época do que significava exatamente o pai de uma família pegar suas trouxas e sair de casa no meio da noite. De todo modo, a primeira conseqüência deste ato deles veio sobre a minha pessoa que devido aos cortes financeiros que a minha mãe começou a fazer saí da escola privada onde eu tinha no máximo 14 coleguinhas de turma para dividir quatro paredes escolares e públicas todas as tardes com agora no mínimo mais 29 coleguinhas.


O Jardim de infância que eu freqüentava, o privado, tinha como principal palavra de ordem a chave do positivismo, “ordem”. Os adultos em miniatura e eu entravamos na escola em fila indiana, cantávamos o hino nacional ou o do Maranhão ainda em fila e seguiam também enfileirados rumo às suas turmas também ordenadas, silenciosas e monotonamente sistematizadas. E lá passávamos a tarde inteira entre livros, pinturas e ordenadas brincadeiras.

Depois de uma bela festa de colação de grau do Jardim de Infância, que por sua vez me traz a lembrança dos meus dias sem dentes frontais e da insistência da minha mãe para que eu ainda assim sorrisse para as fotos, estava lá eu perdida em meio aos meus 29 coleguinhas e não mais 14 tendo que disputar o lugar menos longe do ventilador e garantir que sobreviveria a uma tarde quente - fosse verão ou inverno – ao invés de ordenadamente caminhar para a minha formação patriótica.
O pior ainda estava por vir. Toca a sirene, é o recreio. Ao longo dos meus longos seis anos de idade, eu ainda não tinha sido incomodada com barulho de verdade, até aquele primeiro dia de aula na primeira série da escola pública mais próxima da minha casa.

Passados meus primeiros cinco dias de barulho, de dores de cabeça e de alguns micos na hora do lanche por ser a única a levar maçã e não biscoito para a escola, lá estava eu totalmente adaptada a correria a cada barulho da sirene, a falar muito pra não ter que ouvir tanta coisa ao mesmo tempo, entre aulas, gritarias, bate-bocas de alunos, a música que tocava na cantina e os carros que buzinavam do lado de fora da escola. Já era tudo normal, nada mais me causava dores de cabeça, nem mesmo as bobas atividades que serviriam para justificar a aprovação até do aluno que faltava três dos cinco dias que devia estar na escola. A normalidade era tanta que eu já contribuía com a minha parcela de barulho.

Na verdade, não foi bem UMA parcela de contribuição, entre quebrar a cabeça de um colega na segunda série sem querer na segunda série do fundamental, arranhar o nariz do valentão da turma na terceira, ser suspensa na quarta por chamar os três melhores alunos da turma de gays (que me perdoem os gays, mas na época – e não faz tanto tempo assim – chamar um menino de gay era xingamento), ser a única a freqüentar a biblioteca da escola na quinta e ser a piada da turma por isso, fazer a diretora correr o colégio inteiro atrás de mim na sexta e me esconder no banheiro morrendo de rir da lentidão da senhorinha de mais ou menos 60 anos, beijar o bonitão popular da escola na sétima, mesmo não sendo a bonitona e muito menos, a popular, até aqui foi muito barulho dividido em parcelas a perder de vista.

Me silenciei na oitava série porque precisava pensar em alguma coisa, mas tudo que fiz foi ler muita coisa. No ensino médio voltei a fazer muito barulho, mas não entrarei em detalhes porque possivelmente essa fase renderá um dia desses uma crônica inteirinha.

Depois de uns bons anos de silencio passados, resolvi retornar ao lugar do barulho, sabe-se lá porque exatamente, mas suspeito que de novo tenha uma relação com economia e finanças. Certo é que agora a minha posição é diferente, retornei ao lugar da zoada, mas agora sou aquela que precisa pedir “ordem”. Junto com a necessidade de pedir “ordem” veio a mesma dor de cabeça, graças ao primeiro ruído que encontrei ainda na sala dos professores. Estão todos cansados, mesmo os que aparentam não ter mais de trinta anos. Dizem estar cansados do sistema de notas, da escola, dos alunos, do conhecimento e até de si mesmo.

Nesse primeiro espaço o som é unânime quando o assunto é faltar, quando o assunto é férias, quando trata-se da possibilidade de sair mais cedo, quando é possível se esquivar, quando basta fugir, esse som é alto, é claro, é “SIM”. Ele continua alto quando se fala em conteúdo, em aluno, em trabalho, em luta, só que agora é “NÃO” e sobre isso nem precisa haver discussão.

Fora da sala dos professores com ar-condicionado, mesa, cadeira, porta de vidro para não se ouvir o barulho de fora da sala, cadeiras confortáveis, água gelada, suco de cupuaçu e café, fervem as cabeças, os hormônios e as línguas dos adolescentes-alunos. Eles não sabem o que querem, alguns sonham, estão sempre na escola, não exatamente porque pensam em aprender alguma coisa, mas porque concordam que ficar em casa é um “saco” e nessa fase eu lembro que é mesmo. Alguns dizem que pra melhorar precisam estudar, mas o barulho não os deixam pensar muito sobre isso, porque quando resolvem parar de falar toca a sirene e aí é hora de correr pro intervalo e fazer mais zoada.

Entre alunos que foram mandados embora porque estavam com a farda incompleta, diretores zangados porque alguns professores não lançaram suas notas no sistema, coordenadoras estressadas por serem obrigadas pelo cotidiano a bancarem as psicólogas juvenis, supervisoras sem saber o que fazer com os alunos pegos drogados, alunos querendo estar na escola e ao mesmo tempo torcendo para o professor não vir e ir pra casa mais cedo, meninas preocupadas em brigar entre si por fofocas, namorados e cabelos, tem muito barulho dizendo outra coisa, mesmo quando parece apenas um som sem nexo. Tem gente dizendo que a educação pública está uma merda graças aos professores que não a levam a sério, tem professores dizendo que a culpa é do governo que pagam pouco pelo trabalho contínuo do professor, tem supervisor defendendo que precisa melhorar a administração, tem diretor dizendo que o problema é a coordenação, tem coordenação dizendo que precisamos mudar a perspectiva pedagógica pra resolver.

Tem muito barulho, pouco silencio, pouco pensar, nada de resolver e eu só quero que a minha dor de cabeça não passe, porque na última vez eu me adaptei.