terça-feira, junho 5

Por quê, às vezes, saio do teatro com a sensação de não ter gostado e sem coragem de dizer: Isso é uma merda!

Ilustração Diego

Sobre o conteúdo e a forma
Tratando-se de arte, a palavra superação é muito delicada. Dizer que o romantismo foi uma superação do classicismo é um tanto perigoso. Mas, antes de entrar nessa seara, nos perguntemos o que é arte, com letra minúscula mesmo, sem grandes elucubrações. Não coloquemos esta esfera do conhecimento humano em um grande plano, inalcançável, transcendental, onírico. Isso traria muita margem para licenças poéticas e, licença poética, em um universo objetivo, dá tanto trabalho quanto erva daninha... O que é arte? Trate de achar a primeira palavra que vem à cabeça, sei lá, sem muito refletir, sem muita filosofia, sem muita xerox de universidade... Quando penso em arte sem muito pensar me vem a seguinte frase: “qualquer coisa”. Arte, portanto, é “qualquer coisa”. Não deixa de ser um pouco categórico, quanto mais se, no final deste artigo, eu não colocar “Igor Nascimento, doutor em estudos do diabo a quatro”. No entanto, hoje em dia, no cotidiano onde a metodologia, abstração do senso comum transformada em método, método transformado em teoria, que, por sua vez, é transformada em conhecimento científico que é destilado do conhecimento empírico, para se tornar obsoleto, voltando ao senso comum para ser dali abstraído, transformado em método e..., ser  categórico pode ser uma grande virtude, uma economia de tempo, desde que amparado, é claro, por uma boa metodologia, menos científica e mais libertária. 
Vamos à ela!

           Arte é qualquer coisa que me faz sentir qualquer coisa. Então uma agulhada pode ser uma arte, uma vez que me faz sentir algo? Não. No entanto se leio um texto, que nada fala sobre agulhas, e me sinto espetado, ferido, sangrando... Sim: trata-se de algo artístico. Um conteúdo, por exemplo, o sofrimento banal de um jovem imaturo que se apaixona perdidamente e depois se mata, nada mais desinteressante se colocarmos assim, nessas palavras de subtítulo de jornal sensacionalista, nesse padrão jornalístico que faz com que tudo se torne corriqueiro, do resultado dos jogos de futebol ao assassinato do pai de família, nesses termos nada é tocante, exceto o fato de um jovem, com um futuro talvez brilhante, talvez não, mas com a possibilidade de sê-lo, ainda mais, que agora, morto, não o poderá jamais saber, bem, esse jovem morreu... Todavia, se chamarmos este jovem de Werther, se traduzirmos, através de uma prosa densa todo seu sofrimento, os bastidores de seu drama esmiuçado em mais ou menos duzentas páginas, se soubermos , pelo seu ponto de vista, o desenrolar atrofiático de seu amor pela jovem Charlotte, aí sim, a notícia descartável pelo cotidiano torna-se uma obra de arte eterna.
            Qual a diferença se o conteúdo é o mesmo? Qual é a grande tirada se a dor física de uma agulhada é, geralmente, igual para todos? Eis aí que entra o argumento: arte é “qualquer coisa”, mas qualquer coisa que me provoca alguma coisa não só através do conteúdo, mas da forma de como é expressado. Um sapato sempre será um sapato, mas nunca um sapato será apenas um sapato se pintado com toda a subjetividade de Van Gogh. Os conteúdos sempre existiram. Eles se transformam de uma sociedade para outra, de um tempo para outro. Eles surgem de acordo com uma situação nova, em razão dos novos meios de comunicação, das novas armas de destruição de massa etc. Os conteúdos existem, são concretos, a maneira de expressá-los que vai determinar a diferença entre a manchete de um jornal chinfrim e o título de um romance, a qualidade de um quadro pintado por um pintor amador e por um grande pintor.
A arte nada mais é do que uma FORMA!
       A vitória da arte é a vitória da forma. Sua capacidade de falar sobre amor durante milênios e não cair no ostracismo nada mais é do que uma vitória da forma! A revolução de um estilo para outro, de uma técnica para outra, são desdobramentos únicos do caráter maleável da forma que se faz sensível ao mundo externo, às novas necessidades, aos novos meios de produção. A forma muda tanto para falar dos mesmos conteúdos quanto para falar dos novos. Nunca poderemos dizer que um estilo supera outro, que o realismo seja superior ao romantismo pela sua objetividade (embora arbitrariamente subjetiva)... O que muda é a maneira, o modo de expressar uma coisa que caminha pelos séculos, como o amor entre duas pessoas, ou de uma coisa que surge avassaladoramente e precisa de novos moldes para ser expressa, como o holocausto que pariu por fórceps o Teatro do Absurdo...
Deixando bem claro o que é forma e o que é conteúdo, passemos ao teatro!
                             Jovens e velhos artistas, que bebem de Artaud, de Brecht, que sabem de Antoine, que se apaixonam por Beckett, representam de tempos em tempos peças que falam da miséria humana, performances com intuito de mostrar cruamente o mundo cruel em que vivemos, representações que quebram a quarta parede, adaptações de Mário Quintana e Paulo Leminski com o objetivo de mostrar o quanto a vida é simples e, portanto, bela e, no entanto, complicadíssima...
                                           Artistas que recolhem aplausos, que voltam para casa com sua consciência de artista, de que fizeram o seu papel de artista, que falam como a artistas, que fumam como artistas, soltando baforadas que os separam das pessoas banais, e portanto não-artistas, que enchem, igualmente, o nosso saco como artistas que são...
                                                          Trabalhos que têm no plano teórico, objetivos estratosféricos, que abordam conteúdos de natureza delicadíssima, que se impõem diante de todos como uma verdade dura que vai ao encontro do homem embrutecido...
Senhores,
Até então, sinto muito, não falamos de arte, falamos de conteúdo. O que acontece com uma performance que fala da situação dos travestis, que se põe na rua com atores arrastando-se pelo chão, na frente de um público que pouco entende o que está acontecendo, que pouco sabe daquilo que é representado, que não tem ideia do que é, de fato, aquilo; não é nada mais nada menos do que a vitória do conteúdo diante da forma. O que sustenta a obra não são seus aspectos formais, já que o público nada entenderia, ou muito pouco entenderia se não fosse informado, se não fosse avisado que aquilo era para ele sentir alguma coisa...
Olha-se um bailarino no chão, comendo lama,
Pensa-se: é um artista;
Supõe-se: ele quer dizer alguma; 
Consulta-se o programa: Ah! É isso que ele quer dizer!;
E depois: Legal, né? Tocante, profundo...;
Em seguida: O que você vai fazer depois do espetáculo? Eu? Nada...
Tais manifestações que surgem de todos os cantos, acabam por tornar a arte em algo corriqueiro, uma abstração desesperada que busca, de qualquer maneira, um conteúdo e se usa do abjeto, dos dramas reais, dos elementos marginais, das obras já consagradas e do “nada que vai para lugar nenhum” para se expor, para dizer “olha aqui, somos artistas!”, e não fazem mais do que o mesmo processo de banalização do jornalismo sensacionalista: eles (contemporâneos convictos, pós-contemporâneos fanáticos, que são contra ao naturalismo fervoroso e ao realismo dogmático) banalizam o transcendentalismo, fazendo com que o público, ao ver algo diferente, olhe com indiferença e diga “Ah, olha lá, só deve ser coisa de artista aquilo”...
E por que, às vezes, eu saio do teatro com a impressão de não ter gostado de tal espetáculo, mas com medo de dizer que achei uma porcaria? É por que o espetáculo é sustentado pelo conteúdo que defende. Se eu crítico ferozmente um trabalho que visa mostrar o cotidiano das prostitutas, corro risco de criticar a temática do trabalho, a tentativa de expor uma realidade tão delicada. Se ataco uma peça de Beckett, posso ser tido como alguém que desconsidera o trabalho de um prêmio Nobel. Criticando o espetáculo, eu posso ser tratado como insensível, como desinformado, como desumanizado, quando, na verdade, a forma com a qual o conteúdo me foi exposto nada me fez sentir. Contrariamente, existem aqueles, ratos formados por livros de teoria e revistas cultas, que acham maravilhoso o espetáculo que fala das prostitutas e seu difícil cotidiano, expondo, não suas verdadeiras impressões (o espetáculo foi uma merda, digam logo ora bolas!) mas o conteúdo de seus pensamentos esculpidos, talhados e herméticos. Ou seja: depois de terminado o espetáculo dos conteúdos, abre-se espaço para o conteúdo espetacular dos intelectuais.
Na explicação do trabalho a obra é absorvida pelo conteúdo que defende. A forma, a qualidade estética, o ineditismo, a manipulação das ações, tudo isso fica de fora... No entanto, há outro processo, ainda mais grave, ainda mais aterrorizador: é quando a forma passa do rol de formato para ser conteúdo. Vemos longos debates sobre novas técnicas, novos “teatros”, novas danças, novos elementos a serem postos em cena. Todavia, há um esquecimento de um questionamento primordial que deve ser feito antes de se apresentar qualquer trabalho: “o que raios quero dizer com isto?”. Mesmo se, o que você queira dizer como artista seja "nada", que se tenha ciência disso, como o fizeram os dadaístas, porque, quando a forma vira o conteúdo, o mpaximo que pode acontecer é uma orgia de masturbações concêntricas que não dizem absolutamente coisa alguma.

2 comentários:

Unknown disse...

po, igor...fiquei curioso pra assistir sua adaptação de nelson depois de ler esse texto. porq o nelson, vamos dizer, q já quer dizer algo ... talvez muitos jã vão esperando mais ou menos o que esperam...a porra de uma tragedia neurada(o conteúdo)...e agora como vai lidar com a forma (o q resta...)....é q a parada.

diego
diego.

joakingson disse...

Valeu, Igor, tu conseguiste uma proeza digna de nota: foste do nada pra algum lugar concreto. Belíssima crítica. A partir de hoje, vou esculhambar mesmo, doa a quem doer!