quinta-feira, junho 23

Vida em uma lauda - A porteira

Pensou na vida, mas não olhou pra trás. As lembranças já não faziam parte dos seus planos, não havia o que recordar, nem infância tivera. Na mala praticamente vazia, o futuro: um espaço a ser preenchido. Vestida de coragem, calçada de garra, deu o primeiro passo: encarar o mundo. No bolso, identidade para lembrar quem era; sobrenome para jamais esquecer suas origens, mesmo com todo o sofrimento, afinal cada um carrega consigo uma história difícil de ser apagada, e, além de algum dinheiro entregue por seus irmãos da venda de carvão, não levou mais nada, nem fotos; a da identidade era mera formalidade, já não se reconhecia ali.

O sol estarrecido acompanhava-a de perto sem deixar que nenhuma nuvem lhe tampasse a visão. Colocou a mala no chão e abriu a porteira retirando a corrente que se agarrava a cerca impedindo sua passagem. Parou. Contemplou por alguns instantes aquele céu tão azul que seria capaz de respingar sua cor em qualquer coisa. O calor intenso ultrapassava sua pele e alcançava o sangue que corria por suas veias. Era chegada a hora de partir o cordão umbilical com os dentes antes que a parteira do vilarejo cortasse os seus sonhos de ir embora daquele chão, pois antes dos dezoito anos, as barrigas das meninas já despontavam, enquanto os pais dos rebentos embrenhavam-se na roça, isso quando não eram vendidas aos fazendeiros por punhado de terra ou de dinheiro, como ocorrera com duas de suas irmãs. Quanto valeria? Desviou o pensamento e seguiu em frente. Nenhuma lágrima. Ninguém a levara até a saída do vilarejo. Iria ser mulher da vida, sua mãe dizia. O pai reforçava a ladainha chegando a ameaçá-la com o cipó, como o fizera em toda sua infância. Não se intimidou. Apressou o passo e chegou ao pequizeiro, local onde o pau de arara passava para recolher os desistentes, como o povo chamava quem ia embora. Para ela, os libertados.

Ao longe a nuvem de poeira avisava: é chegada a hora de partir! Respirou fundo. Engoliu a saliva forçosamente como se um nó na garganta impedisse o acesso... Pisou firme no primeiro degrau. Jamais teria o destino que lhe traçaram. Fechada a porteira, renascera.

Alice Nascimento


3 comentários:

Anônimo disse...

meus deus...
fugir de um destino programado
coisa dificil, hein? e depois da porteira?

diego

Alice Nascimento disse...

um mundo não tão diferente do de dentro da porteira, a diferença... ousar acreditar que possa ser melhor! talvez...

Anônimo disse...

e quem sabe o que reserva o destino?