domingo, julho 21

O vestido


 Por Maria Ligia Ueno

E o meu coração resolveu bater forte hoje. E no meu vestido se percebe a marca da aceleração do pulso, marcando o tecido e desenhando espirais pelas minhas curvas. Pernas eriçadas e pelos cruzados, esperando.

Ó Édipo, tu mataste a esfinge que havia em mim, desvendou os mistérios do portal Tebano, transformastes-me na filha de Asopo, tiraste-me a inquietação para introjetar o sossego nas minhas artérias. 

E o meu vestido roda sozinho, sem qualquer vento, sob a bandeira nacional, parece até que tem vida própria, bailando ao som do teu riso e comemorando tantas despedidas quantas forem necessárias, sabendo da brevidade de cada uma delas.

As linhas do tecido formam uma trama forte, um verdadeiro emaranhado de ideias, complicações, sentimentos e sensações, desfiando as mazelas do cotidiano, bem como, desfilando a última moda parisiense nas calçadas.

-Que bela moda, da mais alta costura. Transformou em boneca de luxo aquela menina de porcelana arranhada.
- Que bela moda, muito mais refinada. Agora todos desejam ser menina encantada.

E o tecido fora tingido, antes mesmo da tosa, tingido pela alegria do sol, e pela seriedade da lua. Tingido pelo sorriso do campo e pelas pegadas da ovelha. Tingido pelo menino do pastoreio, que afagava aquela lã preciosa e bruta com amor. E quando a lã foi retirada da ovelha, e quando a lã foi fiada e tramada, e quando a lã virou tecido, já restava impregnada a sua cor.

Em vão tentou a costureira moldar teu corte, em vão tentou a costureira tirar-lhe a vivacidade, que sempre existiu no vestido. Ele nasceu para ser assim, vívido, radiante, contagiante. É um tecido de bolinhas, feito catapora, que adoece todos os corpos que o vestem, contaminando-os com sua alegria esporádica e frequente (ao mesmo tempo). E todos aqueles corpos enfermos, cheinhos de pintinhas, cheinhos de risinhos, cheinhos de canções e feijões mágicos, fluíam despercebidos pelo trânsito, feito epidemia, feito pandemia. Uma invasão invisível e terrível na alma humana.

E o vestido seguia pelo salão, bailando solitário, aguardando o paletó para dançar colado, aguardando que o paletó lhe trouxesse sua bebida refrescante, aguardando que o paletó (aquele paletó específico) lhe acompanhasse até o guarda-roupas para o enlace. O paletó de sarampo.


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