I
a única coisa que se
vê é o breu. o escuro. o nada. o vazio. abre-se uma porta que se fecha
rapidamente. ouve-se o barulho dos meus passos sobre o assoalho de madeira. uma
luz enfraquecida começa a iluminar calmamente o lugar. ainda pouco se vê.
apenas vultos. há uma cadeira. sento-me. bebo de uma garrafa de vinho que surge
da escuridão aos meus pés.
— estava discutindo
sobre você, meu querido personagem, antes de adormecer na cama e vir parar
aqui. sinto sua presença. deixe-me vê-lo enquanto não me acordo desse sonho
maluco. preciso ver a mim mesmo, esquecer-me-ei depois, eu juro! mas por um
instante, me permita admitir a mim tudo o que me falta.
II
apareço diante de
mim e percebo que estou diante do mais óbvio espelho.
caio no abismo da
lucidez. tenho tentado me encontrar, mas encontrar a quem? sei que não posso. o
desejo do encontro não passa de uma fuga deste encontro. uma fuga da
existência. e essa fuga, que tenho realizado há tanto tempo, aonde me levou?
uma dor imposta por anjos de asas quebradas e olhos furados pela chama da
criação, da felicidade da multidão, do brilho de bilhões de estrelas apagadas
toda manhã pelo despertador, invade minha alma e me torna esse alguém tão
paradoxal por dentro. eu não faço sentido. tudo pode acontecer em mim, tudo,
pois sinto o vazio onipresente da vida. o devir de um tempo que não existe, não
pode existir. ainda ouço o ecoar do big bang. ainda possuo o caos das explosões
vulcânicas agitando meus átomos. ainda sinto-me arrastar para o mar, com o
desejo de um rio de sangue que sonha em levar tudo consigo. mas não posso, o
nada é o que restará em mim. é para o nada que quero caminhar. só assim, tenho
em mim todas as possibilidades como um Álvaro de Campos.
III
levantei-me da
cadeira e me vi parado diante de um imenso abismo escuro no qual saltei sem
pensar, sem mais delongas desapareci na ubiquidade. o que vi, não tenho como
explicar."