Era louca. Ninguém sabia ao
certo como chegara à cidade, no entanto já há muitos anos que ela morava ali.
Andava pelas ruas, maltrapilha, um farrapo humano que vivia a perambular com
seu carrinho de supermercado quebrado cheio de todo tipo de bagulho que ela
juntava em suas andanças. Os garotos, em sua crueldade de adolescentes,
maltratavam a pobre louca de todas as maneiras possíveis e imagináveis, lhe atiravam pedras,
xingavam, enxotavam-na com algazarra de onde quer que a encontrassem. Não era
tão velha quanto parecia, mas as opressões e dissabores da vida lhe haviam
dissipado qualquer traço de juventude e beleza, se algum dia ela teve
alguma. Dentre todos os ‘pertences’ que tinha – se é que todo aquele lixo
que carregava pudesse ser chamado de pertences. – havia um que ela não se
separava, uma pequena boneca de pano, velha, suja e encardida que ela carregava
pra onde quer que fosse.
Se abrigava em um beco da cidade sobre uma mistura de papelão e panos sujos nos
quais dormia, protegendo-se do frio da noite, o ambiente era escuro, úmido,
abafado e fétido, mas era aquele lugar que a servia de casa.
Certa noite, depois de virem de uma festa nas cercanias, os garotos já meio
‘altos’, resolveram por farra passar onde a louca dormia, para se divertirem
mais uma vez as suas custas. Chegaram falando alto, fazendo barulho, a louca
acordou assustada e tentou se proteger em um canto cobrindo-se com os papelões,
os garotos espalharam todos os seu pertences, reviraram se carrinho, quebraram
garrafas, espalharam o lixo. Os olhos da louca arregalados de pavor virava de
um lado para outro do beco enquanto ela se recostava mais e mais no canto que
agora lhe servia de abrigo contra aqueles jovens que destruíam sua casa. Então
a atenção deles se voltou para a louca encolhida no canto, começaram zombando
dela, mas, como se acometidos de uma estranha histeria coletiva, começaram a
surrá-la, primeiro com socos e chutes, depois com qualquer coisa que lhe
estivesse à mão. A seção de selvageria durou o tempo que levou para se saciarem
de sua sanha de violência gratuita. Ao darem-se por satisfeitos, saíram de
volta para suas casas, sorrindo e comentando sobre as proezas daquela
noite.
Somente um dos garotos ficou para trás, ele não havia participado da barbárie
que havia ocorrido ali, não concordava com o que os outros faziam, mas não
tinha como se opor a eles. O garoto fica parado no beco olhando toda a
destruição causada pelos que estavam com ele, seus olhos procuram a figura da
louca, e sob a fraca luz da lua ele observa uma massa desfigurada e
ensanguentada jogada no chão do beco. Ele dirige-se em direção a ela, mas antes
para, abaixa-se e pega algo no chão, então vai até onde a louca está,
ajoelha-se e lhe estende a mão, nela esta a pequena boneca de pano que ela
levava sempre consigo, ele lhe olha nos olhos e ela lhe devolve o olhar, não um
olhar de bicho, de louca... mas um olhar que só um ser humano podia dar.
Depois daquele dia, nunca mais viram a louca pela cidade, não sabiam por que
tinha ido embora, pra onde tinha ido, e nem sentiram falta dela. Apenas o
garoto de vez em quando voltava ao local aonde a havia deixado, e ali no beco,
sob a luz da lua, chorava.