sábado, outubro 13

A louca



Era louca. Ninguém sabia ao certo como chegara à cidade, no entanto já há muitos anos que ela morava ali. Andava pelas ruas, maltrapilha, um farrapo humano que vivia a perambular com seu carrinho de supermercado quebrado cheio de todo tipo de bagulho que ela juntava em suas andanças. Os garotos, em sua crueldade de adolescentes, maltratavam a pobre louca de todas as maneiras possíveis e imagináveis, lhe atiravam pedras, xingavam, enxotavam-na com algazarra de onde quer que a encontrassem. Não era tão velha quanto parecia, mas as opressões e dissabores da vida lhe haviam dissipado qualquer traço de juventude e beleza, se algum dia ela teve alguma.  Dentre todos os ‘pertences’ que tinha – se é que todo aquele lixo que carregava pudesse ser chamado de pertences. – havia um que ela não se separava, uma pequena boneca de pano, velha, suja e encardida que ela carregava pra onde quer que fosse.

Se abrigava em um beco da cidade sobre uma mistura de papelão e panos sujos nos quais dormia, protegendo-se do frio da noite, o ambiente era escuro, úmido, abafado e fétido, mas era aquele lugar que a servia de casa. 

Certa noite, depois de virem de uma festa nas cercanias, os garotos já meio ‘altos’, resolveram por farra passar onde a louca dormia, para se divertirem mais uma vez as suas custas. Chegaram falando alto, fazendo barulho, a louca acordou assustada e tentou se proteger em um canto cobrindo-se com os papelões, os garotos espalharam todos os seu pertences, reviraram se carrinho, quebraram garrafas, espalharam o lixo. Os olhos da louca arregalados de pavor virava de um lado para outro do beco enquanto ela se recostava mais e mais no canto que agora lhe servia de abrigo contra aqueles jovens que destruíam sua casa. Então a atenção deles se voltou para a louca encolhida no canto, começaram zombando dela, mas, como se acometidos de uma estranha histeria coletiva, começaram a surrá-la, primeiro com socos e chutes, depois com qualquer coisa que lhe estivesse à mão. A seção de selvageria durou o tempo que levou para se saciarem de sua sanha de violência gratuita. Ao darem-se por satisfeitos, saíram de volta para suas casas, sorrindo e comentando sobre as proezas daquela noite. 

Somente um dos garotos ficou para trás, ele não havia participado da barbárie que havia ocorrido ali, não concordava com o que os outros faziam, mas não tinha como se opor a eles. O garoto fica parado no beco olhando toda a destruição causada pelos que estavam com ele, seus olhos procuram a figura da louca, e sob a fraca luz da lua ele observa uma massa desfigurada e ensanguentada jogada no chão do beco. Ele dirige-se em direção a ela, mas antes para, abaixa-se e pega algo no chão, então vai até onde a louca está, ajoelha-se e lhe estende a mão, nela esta a pequena boneca de pano que ela levava sempre consigo, ele lhe olha nos olhos e ela lhe devolve o olhar, não um olhar de bicho, de louca... mas um olhar que só um ser humano podia dar.

Depois daquele dia, nunca mais viram a louca pela cidade, não sabiam por que tinha ido embora, pra onde tinha ido, e nem sentiram falta dela. Apenas o garoto de vez em quando voltava ao local aonde a havia deixado, e ali no beco, sob a luz da lua, chorava.

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