Meus dias estavam iguais aos do
cara da música Cotidiano do Chico Buarque. Todo dia acordar às 7h da manhã,
tomar banho, comer algo na hora do café, que não fosse tomar o próprio café,
pois diferente de todas as pessoas noturnas que conheço, eu era a única que não
me dava bem com esse bichinho preto e viciante, então a opção podia ser um
suco, um pão e uma banana. Depois, banho, uma olhada no espelho, alguns
penduricalhos adicionados ao visual, uns borrifões de perfume e por fim, sair
correndo pra garantir um espaço no ônibus.
Às 7:45h deveria estar na parada do ônibus e pra aumentar as possibilidades de ser menos amassada nesse espaço o melhor é caminhar até o ponto final, um pouco mais distante, mas nada que dez minutos de caminhada não resolva. Caminhada do dia executada, ponto final à vista, agora é só decidir se é preferível brigar pra sentar ou entrar no ônibus confortavelmente e escolher um canto pra ser menos empurrada.
Uma viagem em qualquer ônibus em São Luís do Maranhão traz consigo inúmeras possibilidades de estresse ou sorriso dependendo do humor de cada um, entre elas: motorista parando no meio da rua pra conversar com outro motorista também atravessado na rua; um passageiro gritando para esses motoristas “quer conversar compra um galeto no domingo e convida o cara pro almoço”; uma mulher que fala alto no celular e que faz todos os outros passageiros descobrirem que ela foi traída pelo marido e que está tentando encontrar a outra para acertar as contas e que entre esse acertar as contas está ter uma chance de também ficar com a outra, ou seja, quase um ménage à trois parcelado; um adolescente que resolve fazer o boa limpeza no salão das narinas e que tenta disfarçar olhando em volta pra garantir que ninguém está olhando, mas que depois de todo esse esforço fica fazendo bolinha com a meleca; um casal de namorados que se perdem entre beijos carícias e que fazem os passageiros atrás deles ficarem desconfortáveis, provavelmente porque também queriam estar beijando alguém em qualquer que fosse o lugar; o jovem em pé que não perde a chance de conferir a comissão de frente da jovem sentada à sua frente e que sorrir acompanhando a música que toca em seus ouvidos via fone ligado ao celular; o nomeado DJ do ônibus que parece ser o único que gosta do “enfica” tocado em seu som retumbante; a mulher que grita descontrolada porque o motorista esqueceu de parar onde ela devia descer; e eu que no meio disso tudo só queria estar sentada tirando um bom cochilo e que agora só lamento não ter escolhido brigar pelo lugar ao invés de entrar confortavelmente no ônibus. A propósito, bem que o senhor em minha frente poderia ter educadamente pedido pra segurar meus livros.
Entre os livros que carrego um
manual de ética sugerido pelo professor de Ética Contemporânea e a leitura
divertida da semana, O Guia do mochileiro das galáxias. O primeiro está com o
marcador na Ética utilitarista e o segundo na parte em que a baleia e um vaso
de plantas são lançados da nave espacial, uma queda pra nos passar a ideia de
que somente os homens (representados pela baleia) no curto espaço de tempo que
tem (representado pela queda livre) são os únicos da natureza a se preocuparem
com as clássicas perguntas “quem somos?”, “de onde viemos?” e “para onde iremos?”.
O livro de ética não interessa dizer onde parou, afinal, ainda estamos no
momento descontração.
De volta ao ônibus, finalmente
consegui sentar, lugar na janela, cadeira acolchoada, encaixe perfeito da
cabeça, sono sendo despertado e de repente um freio brusco e um grito “motora,
tu não tá carregando tua mãe, não, seu corno!”. Vamos tentar de novo, janela,
vento no rosto, óculos escuros, encaixe perfeito da cabeça e cutucão no braço
direito, “moça, esse ônibus é o Cidade Operária sentido centro?”, resposta,
“sim!”. Mais uma tentativa: vento no rosto, encaixe perfeito da cabeça e cadê
mesmo o sono?
Depois de freios e cutucões, o sono se espantou, então, o que resta é pensar em nada, tentar dar um descanso pro raciocínio porque quando ele trabalha muito fica lento e tudo que ele não pode às 8:30h da manhã é processar as informações devagar, até porque as cenas cotidianas estão só começando. E por falar em começar, finalmente o ônibus começou a andar depois de meia hora em um dos três engarrafamentos clássicos da Avenida Guajajaras, e quando começou parou novamente pra uma senhora entrar. Cabelos brancos, pele enrugada, corpo diminuído pelo tempo, movimentos leves e lentos e olhos de quem pede um lugar e exige seu direito de sentar. Em meu raciocínio, que agora é mais rápido que o Schumacher em final de qualquer coisa, apenas uma ideia: “ela tem que parar na frente daquele estudante. Rapaz novo, lá pelos seus 12 anos, tá cheio de energia pra gastar. Só não pode ser em minha frente que já acordo cansada”.
Obviamente que a lei de Murphy
não me abandonaria nesse momento, lá vem a senhora devagar e sempre rumo à
minha amada cadeira, “porque diabos eu não dormi? Não veria ela em minha
direção, logo não ficaria moralmente pressionada a levantar e oferecer meu lugar”.
O ônibus não poderia estar de outra maneira a não ser superlotado e é quase
impossível se ter dois pés no chão agora, ainda assim lá vem a senhora imprensando
os passageiros e fazendo contorcionismos, devagar, é claro, mas firme em minha
direção.
Veio, chegou, ficou ali em minha frente segurando firme na cadeira e de olho em mim. Ao meu lado uma outra cabeça branca, outro rosto marcado pelo tempo e cheio do que chamamos rugas, outro corpo lento que se fosse levantar demoraria tanto que chegaria o ponto da senhora e ela ainda não estaria sentada. E sim, foi essa cabeça branca que não quis segurar meus livros. E enquanto eu me digladio com a consciência moral que o professor de Ética tanto falou na escola; enquanto olho pela janela pra disfarçar; enquanto ganho tempo torcendo pra que outro passageiro ofereça seu lugar para a senhora de cabelos brancos e olhos pidões; enquanto finjo que me divirto ao som de uma música que toca em meus ouvidos via fones ligados ao meu celular outro cutucão, agora no braço direito, e outra frase “minha jovem, você está sentada em um lugar de prioridade e tem uma senhora em pé em sua frente”.
Nem deu tempo de ver de onde vinha a voz, porém deu pra perceber que a cadeira confortável e que me proporcionava o perfeito encaixe da cabeça era amarela e que na janela de onde eu aproveitava o vento no rosto enquanto ouvia minhas músicas favoritas tinha um adesivo escrito “RESERVADO” e embaixo do escrito quatro figuras, uma que trazia uma mulher grávida, outra com uma pessoa em uma cadeira de rodas, outra com alguém segurando uma criança pequena nos braços e uma última com alguém de bengalas.
A senhora não trazia bengalas,
mas trazia nos olhos a mensagem “essa cadeira é minha por direito” e eu que
trazia nas mãos o livro de ética não sabia o que fazer com ele enquanto me
levantava para dar o lugar a senhora graças ao ápice de imposição moral por mim
sofrida e exteriorizada pela voz do meu último cutucão no ônibus desse dia.
Depois disso acho que acordei meu raciocínio e acho também que o dia já não tinha sido mais tão cotidiano quanto os anteriores. Em mim não teve satisfação naquela viagem, talvez apenas vergonha. Satisfação deve ter sentido o dono da voz do cutucão, mas possivelmente haverei de sentir satisfação na próxima vez que levantar para dar lugar à outra cabeça branca, desde que não precise de um novo cutucão, pelo menos é isso que diz o livro nas páginas que seguiam e que naquele dia eu ainda não tinha lido. De tudo dois fatos, um: As clássicas perguntas que sondam os humanos se resumem a nada diante do outro, elas são extremamente egoístas, dois: se eu estivesse de carro o máximo que aconteceria na minha ida cotidiana ao trabalho seria um xingamento a um motoqueiro maluco e uma alegria ao ouvir minha música preferida tocada em uma rádio qualquer. No ônibus não, existe tempo pra pensar em nada e muitos cutucões, propositais ou não.
6 comentários:
Cara, O quarto da Mari, ta cheio de histórias deslumbrantes. Por favor ai alunos de Maristhel! vocês pulem a parte da ética rsrs o resto é muito bom.. Show de Bola!!!!
Natan Castro.
Reclamas de barriga cheia! Pelo que eu li, andar de ônibus é beeeeeem mais divertido. Sem mencionar que no ônibus tu ainda podes ser encoxada e aproveitar o balanço! No carro, o máximo que eu faço é ter uma ereção solitária...
Quinzinho
a via crucis do bus rumo ao inferno... sentar ou não sentar? Pensou Mari... e outra Quinzinho... vai pegar busão pra ser encoChado e empresta teu carro pra mari... uma troca ..durante uma semana... e depois vamos ver tua impressão...
♫ FA FA FA FA FA FA FA FA FA FAR
qu'est-ce que c'est ♫
É O FONE NO MEU OUVIDO.
DIEQUITO
Eu gostei. Ao ler pensei que ia terminar de maneira cômica, como a maioria das histórias que eu conto sobre as minhas aventuras no terminal do São Cristóvão. Agora parece que o que eu vejo como algo engraçado, pode ser visto de outra maneira por outra pessoa. Adoro esse jogo de versões e verdades. Parabéns, Baby.
kkkkkkkkkkk adoreiiiiii....muito bom Mari..
Hilda Silva
VALEU galera...parece que as ideias estão fluindo. Valeu pelo apoio de todos e espero que a risada de vocês continue porque ainda tem mais da vida com bom humor...hahaha
Mari Rodrigues
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