Égido não pôde evitar que
uma lágrima espelhasse nos seus olhos a lembrança contida de um passado remoto,
e Miguel nem cogitaria a hipótese de não ver naquele olhar o seu próprio
reflexo deitado na praia ao lado de quem ele, àquela época distante, cria ser
pateticamente o grande amor de sua vida. Uma reminiscência doce, vermelha e
amarga de amantes ordinários e safados que se amaram no anoitecer de uma foda
na areia com o mar acariciando seus pés, mas quem pensa que aquela noite ébria
na praia, que me perdoem o clichê poético da frase anterior, foi uma noite
metaforicamente romântica, hum!, digo-lhe que ela foi mesmo é euforicamente
libertina. Detrás de uma pedra, sob a luz tênue de um holofote distante, de
frente um para o outro, detrás de todos, duas pernas de não sei quem se
levantaram, realmente não deu pra ver de quem eram devido à espessa penumbra e
ao fato de este narrador não ser Deus...
Não tendo, desse modo,
este narrador a dádiva da onipresença, ou da onisciência, o que não deixará de
ser um pouco decepcionante para leitores que esperam demais de um pobre
narrador acuado entre a cadeira e o computador, ele só pôde ver duas pernas se
levantando por detrás das pedras, alguém passando saliva no pênis e metendo
devagarzinho vocês bem sabem onde, como quem manobra cuidadosamente um barco
que vai parando até encostar o máximo que pode no cais. Aquela embriaguez resultou
numa ressaca que não se limitava a uma dor de cabeça, mas se expandia numa
ressaca reversa, uma ressaca que tornava a embriagar, e assim, os amantes,
cadela e cachorro um do outro, perduraram por tantos anos, durante os quais
conversaram muito, para ser exato, pode-se dizer que conversaram bem mais que
transaram, mas transaram melhor que conversaram, pois nunca se disseram com
palavras o que explicavam prolixa, clara e distintamente um ao outro quando possuíam
a carne um do outro. Depois do gozo, sempre se armavam um contra o outro quando
atingiam o ponto inevitável da discussão da relação, e aí eles só queriam mesmo
era se ferir um ao outro, deixando bem claro ao outro todo o sofrimento e toda
a mágoa, todo o ressentimento e toda a angústia, que aquela relação lhes trazia
a ambos, a um porque o outro não lhe dava o que ele queria, ao outro porque o
primeiro queria algo que ele não lhe podia dar, horas e horas de conversa
jogada fora, de papo furado, que normalmente acabavam em brigas, que por sua
vez terminavam com abraços chorosos em meio a tentativas inúteis de consolação,
cheias desse desespero plangente que sempre acompanha a sensação de impotência
absoluta diante da fatalidade. Finalmente, Égido acabou tendo que ir à vida,
recebendo o chamado da necessidade, intimidado pelos imperativos mutiladores
dos pais, que não queriam filho vagabundo nem solteiro em casa. Daí veio a
namorada, que depois virou noiva, em seguida, esposa, e que, ao fim deste
relato, como veremos, estará viúva. No derradeiro encontro, num quarto
vagabundo de hotelzinho barato, um dia antes do casamento de Égido, Miguel o
pegou pelo braço, ele tinha os olhos passionais e Égido tinha os olhos de quem
se despede, a paixão e o adeus são duas coisas que se impelem, quanto mais se
no adeus havia ainda uma latência sedada de paixão, um quê de quero mais, um
antegosto de tristeza diante da evidência dolorosa de que daqui pra frente é eu
sem você, você sem eu, nós dois desatados por nós que só a coragem pode romper,
Miguel olhava Égido partindo, como quem deixa um corpo ser levado pela maré:
– Te amo num gesto incontinente
de paixão sublime, subversiva e inconseqüentemente louca... Que, diante da
escolha entre o conforto de um amor saudável e a acidez de uma paixão
desnutrida, eu prefira, entre a dor e o riso, a linha falha do risco e
conseqüência da inércia da queda, te amo num gesto frágil de orgulho invertido,
ingrato, com um estômago nauseado, e te vejo partir nesse vômito, tu, que eu
creio, e que agora mesmo desacredito, filha da puta, ser o grande amor da minha
vida, pateticamente o grande amor da minha vida, ironicamente o grande amor da
minha vida, iludida, estúpida e, mais uma vez, pateticamente, porque, se fosses
mesmo essa porra de grande amor da minha vida, não partirias, ou antes, deverias
mesmo partir, então, no fim da contas, tudo está como deveria ser...
É claro que Miguel não
disse isso, e se o leitor pensou que ele teve esse espasmo shakesperiano, está
redondamente enganado, talvez Miguel nunca haja tirado tais conclusões sobre o
que sentia, porque, se o soubesse, talvez pegasse um caminho fácil, podemos
dizer apenas que o infeliz havia sido silenciosamente usado numa brecha vaga e
irascível de pensamento. Quem ia dizer tudo aquilo num hiato de tempo tão
curto! O que se pode dizer é que a despedida foi lacônica. Eles apenas se
vestiram e, depois, cada um seguiu seu rumo, Égido para o altar e a vida em
família, Miguel, a rodear a terra e passear por ela, até voltarem a se
encontrar nesta situação tão delicada, em que não houve tempo suficiente, se é
que algum dia houve, para eles terem algum tipo de diálogo que remetesse ao
amor que um dia os havia unido, o que não era de causar espanto nenhum, já que
estavam ambos em carne viva. Finalmente, Miguel disse:
– Você tem uma arma aí?
– Tenho só meu
trinta-e-oito, por que?
– Porque eu vou matar
todos aqueles animais e você vai me ajudar.
– Você vai fazer o quê?
– Vou matar os seus
colegas e você vai me ajudar!
CONTINUA...
6 comentários:
Agradecimentos a Igor Nascimento pela mão dada nesta parte!
Joachim Bach
Cara...essa história está cada vez mais punk.
Por "punk" entenda, surpreendente e doidona!
Parabéns Quinzinho R(r)éi!
Mari Rodrigues
porra,joaquim, massa essa história de tirar fôlego. Paragrafos saramaguianos sem pausa para respiração. Uma história, com perdão do trocadilho, do caralho!
igor n.
realmente é do caralho os contos de quinzinho com trocadilho ou não, mas igor pelo 1 comentário vc teve particapaçao neste episódiao, então seu elogio saramaguiano e bom samaritano (perdão o tracadilho) é de certa forma um auto-elogio.
dieguito.
olha aí, joaquim, essa nigrinha!!
nhem nhem nhem nhem
dieguito.
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