Raimundo
Fontenele é um poeta, natural da cidade de Marianópolis,
Pedreiras, Maranhão. Poeta esse que na juventude participou ativamente de um
dos mais importantes movimentos literários do século passado no Maranhão, o
movimento Antroponáutica do início dos anos 70 que propunha um rompimento
drástico com a tradição poética anterior, tendo como exceção nomes como José Chagas, Bandeira Tribuzzi e o grande Nauro
Machado. Após esse período de ativismo cultural na capital maranhense, o
poeta literalmente meteu o pé na estrada, se apropriando dessas experiências
para o enriquecimento de seu fazer poético. Atualmente radicado na cidade de
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, o poeta trabalha em três novos livros.
Raimundo Fontenele é desses poetas que indubitavelmente a nova geração de leitores
do Maranhão precisar conhecer e se aprofundar pela preocupação e pela
sinceridade em que o mesmo encara a arte em suas mais diversas formas de
manifestação.
A
poesia sempre foi a sua principal manifestação artística, ou antes, houve um
flerte com outros ramos da arte?
R – Sempre a poesia. Desde
cedo, lá pelos oito anos de idade. Com essa idade principiei a leitura da
Bíblia, de cabo a rabo, como se diz no jargão popular. Devo muito à influência
de minha mãe, que sempre lia pra mim, contos infantis, mundos fantásticos que
passei a visitar na imaginação. Mas sempre gostei de música, pintura e
escultura. Esbocei alguns desenhos, mas abandonei logo. Enfim, como diz a letra
do hino do Flamengo, uma vez poesia, sempre poesia.
A
sua geração de escritores é exatamente aquela posterior a queda do Vitorinismo,
e coincide com a chegada do Sarney ao poder no Maranhão. Quais eram as
expectativas no campo da arte no estado naquele período? Sarney pegou carona na
genialidade de Tribuzzi e Nauro Machado? Por fim como era a cena cultural no
período da deflagração do Movimento Antroponáutica?
R - Na verdade, lembremos
que o Sarney vinha de uma ala progressista da UDN, chamada de “bossa
nova”. Era visto assim meio de esquerda.
Eclodido o golpe militar, em 1964, em seguida sua eleição em 1965, o Sarney foi
lá ter com os milicos, como se dissesse esqueçam o outro e pensem neste de agora
que quer apenas governar o seu estado e ficar de bem com vocês. E o Sarney
alimentava a esperança de maranhenses cansados da truculência vitorinista,
daquela forma coronelista de governar. Mais do que tudo Sarney ajudou a mudar a
mentalidade: era o Maranhão Novo, “meu voto é minha lei, Governador José
Sarney; quando entrar na cabine o eleitor é José Sarney pra Governador”, esses
versos da sua música de campanha incendiaram corações e mentes. Havia um
êxtase, uma alegria, uma efervescência com sua vitória. E ele correspondeu no
primeiro momento: abriu e asfaltou estradas; um salto na Educação com o Projeto
João de Barro (educação de crianças e jovens fora da idade escolar), as Escolas
Bandeirantes, escolas de segundo grau de cunho profissionalizante, a criação da
TV Educativa, uma das pioneiras no Brasil. Modernizou a administração pública,
várias empresas estatais foram criadas, naquele momento, não como cabide de
empregos, mas necessárias aos vários projetos gestados por grandes cabeças que
ele recrutou para o governo. Bandeira Tribuzzi, Haroldo Tavares e tantos
outros. A gente acreditava que isso mudaria também o fazer cultural. Na sequencia,
como é certo que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente ele
tornou-se aquilo que mais combateu. Um Vitorino moderno, sem jagunços e três
oitão, mas com práticas cujo resultado era igual: a pobreza do estado, o
enriquecimento das famílias, dos amigos, dos apaninguados, o voto de cabresto,
a subserviência dos prefeitos, toda essa lástima que se arrastou por mais de
cinquenta anos e tornou o Maranhão um estado com o penúltimo lugar nos
indicadores sociais, perdendo apenas para Alagoas.
Explique-nos
de onde veio o nome do movimento e o que o mesmo propunha no campo da poesia no
estado no início dos anos 70?
R – Com exceção dos poetas
Nauro Machado, Bandeira Tribuzzi e José Chagas a gente respirava uma literatura
bolorenta, uma coisa de vangloriar-se do passado, a chamada Atenas Brasileira
da qual não se queria abrir mão e avançar. Através do poeta Viriato Gaspar
conheci o poeta Luís Augusto Cassas, e também o Valdelino Cécio. Em seguida
encontramos o poeta Chagas. Encontrávamos num bar que havia no canto da
Viração, para beber, mostrar poemas e falar sobre literatura. E assim surgiu o
Movimento Antroponáutica, cujo nome é uma homenagem ao poeta Bandeira Tribuzzi,
que tem um poema cujo título é este. E passamos a cavar espaço nas colunas de
jornal, com tanta dificuldade; havia o Jornal do Dia (comprado depois pelo
Sarney e que tornou-se o Estado do Maranhão) onde o Jomar Moraes nos dava
espaço, e o Jornal do Maranhão (da Arquidiocese), e lá nós tínhamos um crítico
de cinema atilado o José Frazão que também nos dava apoio. Mais tarde surgiu o
Jornal de Bolso, do Edson Vidigal, de breve existência, mas onde publicamos
nossas crônicas e artigos. E passamos a
fustigar, atacar tudo que nos parecia velho e ultrapassado e que devia
desaparecer: a Academia, a trova e seus trovadores, os poetas parnasianos com
seus versos lamurientos. Com certo exagero, reconheço. Mas também fomos
reconhecidos e passaram a prestar atenção e nos respeitar como novos artistas e
criadores de um novo tempo ou de um tempo novo, sei lá. Arlete Nogueira da
Cruz, Tribuzzi, Nauro, Jomar, o grande e humano Nascimento de Moraes, o Pe.
João Mohana, enfim, fomos aceitos no mundo intelectual maranhense. Publicamos
então a Antologia Poética do Movimento Antroponáutica. E a seguir fomos
convidados a integrar um projeto da Fundação Cultural que nos publicou e mais
alguns poetas na antologia Hora de Guarnicê.
Quais
foram as consequências da deflagração do movimento em meio a repressão da
ditadura e qual a importância do mesmo para aquela geração no Maranhão?
R - Vocês sabem. A história
é feita de fatos, episódios, circunstâncias, eventos, mil acontecimentos distantes
um do outro, mas que por esta força grandiosa que é a marcha da vida e da
história se conjugam tudo e todos num momento único para deflagrar a coisa,
seja revolucionária ou evolucionária, de reforma ou de acomodação. E por essa
época aconteceu o lançamento do meu segundo livro individual, o Às Mãos do Dia, que era para ser uma
coisa puramente pessoal, mas acabou transcendendo o particular e inseriu-se
nessa paisagem do instante que vivíamos: a ditadura militar em todo o seu
reinado e esplendor. Querendo fugir daquelas noites de autógrafos costumeiras,
que achávamos até enfadonhas, decidimos que o lançamento do meu livro seria
diferente. Aí a gente juntaria artes plásticas e música, e lembro do César
Teixeira, do Josias, do Sérgio Habibe, do Jesus Santos, do Ciro, Ambrósio
Amorim, Lobato, Tácito Borralho, tanta gente. E o lançamento aconteceu na
Biblioteca Pública Benedito Leite. Na noite anterior, após tomarmos algumas
cervejas, eu, Viriato, Valdelino e outros ficamos na escadaria da Biblioteca
Pública conversando e só, de sarro, planejando o lançamento, e cada um saía com
a idéia mais louca. Tipo: no lugar de cadeiras para as autoridades íamos
colocar vasos sanitários; colocaríamos uma árvore de natal com ratos
pendurados, etc.; íamos convocar mendigos, loucos, os despossuídos para tomarem
as escadarias da Biblioteca quando as autoridades e convidados fossem chegando.
Ah, e no coquetel no lugar de bebida alcoólica serviríamos leite, mas não em
taças e sim em penicos. Novos, claro. Naquele tempo a autoridade maior dos
estados era sempre o militar mais graduado, no nosso caso o Comandante do 24
BC. Alguém nos ouviu falar aquelas bobagens e levou a sério. O certo é que o
Governador foi acordado pelo Comandante do 24 BC que lhe ordenou visse do que
se tratava pois algo de muito grave ia acontecer. Fui chamado às pressas no
gabinete do Secretário de Educação (que havia permitido que eu fizesse lá na
Biblioteca, órgão da SEC, o lançamento do livro), à época o saudoso Professor
Luís Rêgo, um homem boníssimo. Quando entrei em seu gabinete levei um susto,
pois ao seu lado estava um Major do Exército. Pálido e trêmulo, ali sentei e o
professor Luís Rêgo passou a me interrogar a cerca do lançamento e do que
estava programado. Neguei tudo. Disse que era mentira. Jamais faríamos uma
coisa daquelas e tal. Despachou-me dali, mas me recomendando prudência, e
cuidado com o que ia acontecer, pois estavam de olho. Pela cara do oficial do
exército nem precisava de me dizer mais nada.
Pois, mais tarde enquanto estava na Biblioteca em companhia do poeta
Viriato Gaspar, ultimando os preparativos do lançamento,, eis que nos aparece
um agente da Polícia Federal. E dirigindo-se a mim diz que estava a minha
procura, e porque nada mandara o livro para a Censura, e cadê o livro e tal e coisa,
e nos colocou em sua viatura fomos até onde eu residia, pegamos um livro, e
enquanto eu lia, o motorista nos levou até a sede da Polícia Federal, naquela
época ali na Rua Grande na altura do Ginásio Costa Rodrigues. Novo
interrogatório pelo delegado de plantão. O Viriato saiu-se bem nas respostas. E
quando o delegado quis saber dos mendigos (olha a subversão) que íamos levar, o
Viriato disse que não tinha nada a ver, aquilo era uma peça de teatro que
estávamos escrevendo e tão logo ficasse pronta levaríamos lá no Serviço de
Censura. O certo é que à noite a Biblioteca lotou. Talvez até curiosos, além de
meus convidados, muitas autoridades se fizeram presentes. Secretário de
Educação, o Prefeito Haroldo Tavares, e lá atrás de uma daquelas colunas reconheci
o agente da PF de nome Mateus, esperando que eu saísse da linha no meu discurso
para me grampear. Mas o resultado prático da repressão, que é o cerne desta
pergunta, é que nós, os jovens (falo dos jovens em geral e não especificamente
do nosso grupo), tomamos rumos diferentes: uns foram para o comodismo da vida
privada, outros foram para luta armada, e no meu caso, no primeiro momento,
abandonei tudo e embarquei numa carona com os hippies e fiquei vagando pelo
país uns três a quatro meses, metido no universo da Contracultura, cujo
estímulos vinham da geração beat, e era uma época rica e enriquecedora,
chegávamos ao desregramento de todos os sentidos, na vida e na arte, aquilo que
o poeta Arthur Rimbaud profetizara um século antes. E a nossa geração foi importante
porque abriu caminho pra todos vocês que vieram depois de nós. É o ciclo da
vida, quer reconheçamos ou não. Ele existe. Ele é.
O
que se faz necessário para que se legitime um movimento literário? Na
atualidade onde muito se escreve em meio virtual, em sua opinião o virtual
conseguirá um dia transpor a tradição do livro físico?
R – No momento nós estamos
num processo de mudança civilizatória muito violento. Ao mesmo tempo que tudo
parece ameno, frágil, acolhedor, há algo de muito forte, viril, ameaçador. Nem
creio que haja espaço para movimentos, como os de antes. Creio mesmo que isso
ficou no passado. O mundo virtual prescinde disso. Cada indivíduo, por si só,
é, ou julga ser, um coletivo, um movimento, uma revolução, um mundo, uma
civilização. Todo o pensamento filosófico, todo o atavismo humano, tudo o que
se acumulou durante séculos, quem sabe milênios, todo o inconsciente coletivo,
toda a sabedoria, todo o conhecimento
representam o que neste instante? Para muitos, nada. É o fim de tudo e o
recomeço de tudo ao mesmo tempo. Quanto tempo, não sei, mas o virtual transporá
sim a tradição do livro físico. Não apenas a tradição, mas o próprio livro, o
objeto, por mais concreto que ele seja ou queira ser.
Como
foi a decisão de deixar o estado, porque tomou essa decisão, existe uma
possibilidade de seu retorno ao Maranhão?
A constatação de que ficar
no Maranhão, no meu caso pessoal, era ficar me repetindo. Fazer novos
movimentos? O sarneysmo começava a voltar-se para o passado. As coisas não
andavam. Era preciso se abrigar sob as asas do serviço público de onde não
poderíamos exercer a crítica contundente que os governantes mereciam. Não
surgiram editoras e leitores que nos permitissem viver do nosso trabalho de
escritor independente. Mas meu amor a esta terra, o interior de onde sou e esta
ilha onde vivi tanto sonho transformado em realidade é o que importa. Porém, é
difícil o retorno. Saí em 1976 e embora tenha raízes aqui, onde vivo
atualmente, em Porto Alegre, no Grande do Sul, também criei raízes. Mas quem sabe do futuro?
Consegue-se
viver de literatura nesse país? Fale-nos de suas atividades na atualidade?
R – Por mais que esse
governo do PT alardeie seus avanços na Educação, com programas quase todo
visando a universidade, a verdade que é que o ensino vai de mal a pior, pois a
educação básica foi relegada a um segundo plano. O governo é pródigo em dar
bolsas , cujo critério principal é criar eleitores para o seu plano de
permanência no poder. Sem uma boa educação na base que tipo de aprendizado é
este dos cursos superiores! A maioria não lê e não pensa. Por isso, o quadro
não se alterou muito nestas últimas décadas. Poucos vivem de literatura num
país assim. Quanto a mim publico periodicamente meus livros e trabalho com revisão
e preparação de textos para a editora de um amigo. No momento trabalho em três
livros: um de contos, Pedaços de Alberto
Caronte (título provisório), um de ensaios, Um Soco Contra o Muro (ensaios) e Crônicas do Pucumã, um pouco de história do município de São
Domingos do Maranhão, onde passei minha infância e parte da adolescência,
embora seja filho de Pedreiras, distrito de Marianópolis. Pretendo publicar no
próximo ano. Com toda dificuldade, pois o dinheiro da Lei Rouanet é para os
amigos do rei e para artistas como Luan Santana, Tico Santa Cruz, Cláudia
Leite, gente que ajuda o governo, louvando-o para a massa de seus fãs e
ouvintes.
A
sua poesia é tida por muitos como marginal, como você vê esse titulo?
R - Do ponto de vista deles.
Do meu ponto de vista eles é que são marginais, pois estão à margem da minha
poesia. rsrs Na verdade não existe arte marginal, a não ser nesse sentido que
dei. Se ela critica a sociedade, os poderes instituídos (mesmo corruptos,
tiranos, etc.) é considerada marginal. Mas do ponto de vista da arte, marginal
é também a sociedade que aceita e se submete a um estilo de vida e de governo
corrupto e de vassalagem. Essa pecha é
muito mais dirigida ao próprio artista para poder enquadrá-lo, e assim
prendê-lo, deportá-lo, matá-lo, calá-lo, enfim. Porque na verdade a arte é um
produto da criação humana, das emoções e dos pensamentos, de suas vivências e
experiências, e que expressa, em seus signos, símbolos, significados, e até
mesmo em sua concretude, expressa, dizia, a magia, o mistério, a beleza,
alegria, o sofrimento, o sonho... Só um profundo imbecil para taxar de marginal
esta coisa maravilhosa que é a vida humana e suas criações mais genuínas,
originais e verdadeiras.
Ferreira
Gullar nos fala de sua necessidade de espantar-se para que sua poesia aconteça.
Como se dá esse fenômeno no seu trabalho é instantâneo ou existe um
laboratório?
R – Cada um tem sua maneira
de ser e de criar. O que é necessário é o talento. Em mim é uma coisa
instintiva, igual a certas necessidades que temos: comer, dormir, amar, criar.
O que existe é o trabalho de lapidar a criação, como o ourives que faz de uma
peça de diamante bruto uma joia encantadora. E no caso da prosa é preciso
dedicar tempo e muita disciplina, uma rotina de trabalho, como o expediente em
qualquer empresa onde se exerce a tarefa cotidiana.
Dizem
alguns que tudo de imprescindível na literatura já foi escrito, o que temos
hoje como produção literária seriam apenas ecos desses períodos, nada de novo
sob o sol da literatura, qual sua opinião sobre essa afirmação?
R – É do Eclesiastes essa
fala: “Não há nada de novo sob sol”. Está certo. Tudo já foi dito, feito,
criado. O que existe é uma forma nova de dizer, fazer, criar, nomear o antigo.
Isto faz toda diferença. Se eu dissesse “fímbria” meu avô entenderia e meu
neto, não. Mas barra da saia, do vestido, isto o neto entenderia. Portanto, não
é pelo fato do sol ser tão antigo que ele deixa de surgir para nós todas as
manhãs. Assim, vamos em frente. Até porque quanto mais obtuso e quadrado é o mundo
mais necessita crer que tudo é novo, que tudo está começando aqui e agora, pois
sem isto a vida e a arte perderiam o sentido. E aí, vamos fazer o quê?
O MITO
Raspar com uma faca, como se escama o peixe,
é fazer nascerem e crescerem os mitos
que não nos pertencem.
E por ser o mundo um animal sem formas,
por ele trafegam, navegam e voam
os mitos ancestrais que nos criaram,
e alimentaram em nós o dom da forma mais que perfeita.
Blasfêmia é isto: erguer-se qual um deus ferino e desalmado
para que ajoelhemos e lancemos nossa rede ao mar:
turva água de amar, pescaria insana,
e só por isso o mito permanece.
Se é para cair, sejamos justos:
o mito não é amor e não é ninguém,
apenas a imagem à semelhança desta outra
que nos devolve o espelho.
(do livro A Via Crucis de Um Poeta Sem Nome
Editora Alcance, Porto Alegre, RS, 2014)
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