quarta-feira, julho 10

Abismo

Era uma dessas padarias com mesinhas de plástico espalhadas na beira da calçada. Já estava ali quando chegamos, a padaria. Existem mais padarias assim no bairro que, inclusive, são muito maiores e mais bonitas do que essa. Pela arquitetura comum, acredito que antigamente foi uma casa e o dono havia começado pela garagem mas com o tempo, por parecer um negócio promissor e também por capricho, expandiu. Talvez este mesmo dono tenha a vendido e ido embora, pois não há, pela expressão do seu José, que é o atual dono da padaria desde que a conheci, nenhuma expressão de quem queira expandir mais ou investir nisso. Ou talvez seu José tenha sido sempre o proprietário, mas algo fez com que se acomodasse, estacionasse nesse ponto. Cansaço? A idade o teria deixado menos otimista? Ou até uma decepção amorosa, quem sabe? Eu que não sei, nunca vi seu José com mulheres nesses últimos anos que tenho freqüentado sua padaria. É uma padaria, mas é dessas que têm mesas de bilhar, café, lanches, tudo feito pelo seu dono/padeiro e mais uma funcionária que eu não sabia o nome. Estou escrevendo daqui agora, se é que já não perceberam isso. Estou esperando uma pessoa. Tenho dúvidas com relação a ela. A conheço há muito tempo, mas acredito que as dúvidas que possuo nunca irão cessar. Não apenas porque ela é mulher e todas as mulheres são ininteligíveis, porque embora geralmente não nos compreendamos, continuamos unidos por alguma vontade estranha, como se a incompreensão nos encantasse apesar de nos fazer discutir e passar raiva seguidamente. É como se ainda tivéssemos esperanças um no outro, até mesmo porque ninguém consegue desistir de um ser que é capaz de te ferir com tanta leveza, com tanta beleza. E, também, é bem verdade que não passamos todos nós de seres distantes e estranhos uns para os outros. Seguidamente nos vimos tomados por um sentimento de estar perdido num deserto de lobos uivantes. A distância entre o lobo e a lua é muito menor do que a que existe entre cada um de nós e um uivo diz um milhão de vezes mais do que um poema. Enfim, não digo isso por rancor, até mesmo porque jamais pensei em sentir algo negativo em relação a ela. Outro dia, nesse mesmo lugar, ela chegou e sentou-se enquanto continuei lendo um livro de receitas em espanhol, sei que é estranho mas passei a tarde toda entretido naquilo e, sem parar de ler, a ouvi colocando as duas mãos cruzadas na mesa e dizer:

- Quem será que inventou a palavra “abismo”?
- Como assim? - respondi sem tirar o olhar do livro.
- Uma vez eu viajei de carona pela América do Sul. Acontece que foi uma idéia imbecil demais. Quando cheguei na Colômbia estava doente, faminta e falida. Caminhei 4 kilômetros por uma auto-estrada na serra cheia de neblina por todo lado, curvas e mais curvas -- que, somadas ao meu estado, me torturavam ainda mais, eu ficava tonta e as vezes me esquecia de quem era. Bem, não sei direito o que aconteceu naquela noite, só sei que a coisa seguinte que me lembro era de já estar de carona numa Kombi de estudantes que estavam em viagem por ali. Desci, a salvo, na rodoviária e voltei para casa.
- E não lembra de nada que aconteceu entre a neblina e tal?
- Branco total.
- Acho que isso deve ser normal.
- Bem, sei lá. Só sei que ontem sonhei que estava naquele mesmo lugar e subi na mureta de concreto que separava a estrada de um abismo enorme e sem fundo, olhava para baixo e tudo era tão escuro, mas não um escuro qualquer, como a sombra duma árvore numa noite de carnaval, mas um escuro vivo, que se movia e parecia possuir personalidade própria, como um ser, como o escuro que fica dentro de uma casa abandonada no tempo, como aquele que fica debaixo da nossa cama quando a gente é criança, é diferente de qualquer outro escuro. Eu me inclinei tanto que era impossível não estar sonhando. Eu estava de pé, mas na horizontal, como se a gravidade não existisse mais e eu estivesse nos braços do abismo vivo, que me abraçava e me beijava de língua. Então acordei. Arrumei o cabelo, escovei os dentes, lavei o rosto, tomei um banho, vim para cá e agora nada mais faz sentido. Não que seja O SONHO o culpado disso tudo, pois é só um sintoma. Um sintoma de que mais nada tem feito sentido. As vezes me dou com uma esquina e sinto vontade de sair correndo. E você aí com esse livro, sei que está me escutando. É tão estranho, porque é a única pessoa que sei que está me escutando quando falo e isso é muito raro. É como se as outras me dessem o olhar, as mãos, o tempo, menos os ouvidos.

Fechei o livro. Ela parecia tomada por um desespero absoluto mas concentrado -- o que pode parecer estranho, porque é possível que algumas pessoas pensem que todo desespero é explosivo e incandescente. E com certeza essas pessoas não conhecem o desespero. Pedimos dois cafés. Continuei em silêncio com a xícara na mão, analisando os desenhos da cerâmica. Parecia uma xícara caseira, branca com flores desenhadas em tons de rosa, violeta e verde-escuro, mas já desbotados. Talvez eu também estivesse desesperado. Essa era minha forma de desespero. Depois, seguimos para casa e até nos damos as mãos no meio da rua...

- O desespero passou -- disse um de nós, só não lembro quem. E o outro respondeu:
- É.

Caímos na cama e ficamos olhando pela janela, chegava o meio dia.

- Tá vendo? -- eu disse.
- O quê?
- O céu.
- Tô.
- O céu é um abismo lindo.

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