sexta-feira, junho 21

O açougue

Por Maria Ligia Ueno

I
A minha alma foi fatiada
Finas lâminas de alma, servidas com limão,
Na tua bandeja de prata.
Você espeta o garfo em cada pedaço,
Saboreando meu doce gosto de derrota.
Cry, babe, cry.

II
Quantos gramas de alma quer levar hoje, senhor?
Quer levar pão integral para acompanhar?
Essa veio de um ótimo frigorífero,
Abatemos essa alma humana semana passada, extremamente macia.

III
De primeira havia um quarto vermelho gritante, talvez e tão somente para aumentar o desespero daquele momento. Ataduras nos braços como se fosse manicômio, mas talvez era um manicômio, não? E, para completar, água amarga para beber. Matar a sede com aquela água amarga não teve preço, e já que fazia dias que estava sem tomar qualquer gole de vida, bebeu aquela jarra como se fosse mel.

Fotografias dos dias felizes grudadas com imãs nos batentes das janelas, trancadas com grades impenetráveis até pela luz solar, apenas para lembrá-lo de que conhecia o céu, mas iria ao Inferno. Estava só, não estava? Estava são ainda? Aqueles robôs brancos não tinham olhar, e nem falavam.

Dois meses, esse foi o tempo do que eles chamaram de purificação. É o tempo em que demorou também para se deixar de querer viver, em que o amargo da água se tornou insuportável, em que a alma estava louca de vontade para partir. E saiu, por um tubo azul, que a depositou em um pote de plástico, feito gelatina.

E o que restou desse corpo, cuja alma foi sacrificada servindo de alimento a outrem? Pergunto-me dia após dia, enquanto cicatrizo as marcas dos catéteres.

IV
Alma é aquele pedaço de si, invisível a olho nu, que em outros tempos achávamos que imbuía o corpo com graça e leveza. Mas o mundo deu voltas para o lado errado, e hoje há pessoas que perderam sua alma em meio à guerra, ao álcool e ao pântano. E desses, quem pode compra almas enlatadas, vendidas num comércio ilegal (que é protegido até pelos governos).

- Eles não sentem nada. Eles não são nada.

Mas para quem não tem alma, alívio da consciência se torna desnecessário.


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