quarta-feira, março 13

Um tersol no olho esquerdo


Não me reconheço mais. E não adianta me olhar no espelho durante uma hora seguida ou perguntar pra alguém quem eu sou. Rio sozinho. Tenho vontade de empinar pipas e bater uma bola. Ser  o prefeito da cidade. Assaltar bancos com  amigos. Matar Sarney a queima roupa e ser manchete nacional com muito orgulho. Ontem pisei num caco de vidro e vi o sangue escorrendo e nem parecia que era meu. Nem dor tive. Foi estranho assim como meus sonhos ultimamente. Tantas pessoas que nem conheço estão neles. Coisas malucas. Vi um homem em ritmo frenético transando com uma mulher e depois o esperma branco e aquoso saindo pelo nariz e pela boca como se a mulher acabasse de ser retirada de um afogamento.  Não vejo o futuro de forma clara e nem dou palpites. O passado tento relembrar nas fotos em cima da estante na sala e nem quero saber de livros de História. O presente é esmagador assim como o calor da ilha e os pensamentos. Bebo água como se tivesse caminhando por um deserto sem cor numa eterna diáspora. Dá pavor pensar em faltar grana pra comprar água e eu morrer desidratado. Antes sentia dó pelo mendigo da esquina da minha casa. Agora não tenho mesmo tempo pra isso ou talvez seja eu o próprio o mendigo e outros é que me vêem com dó. O cabelo cresceu, as unhas, o desvio na coluna, a paranoia. Tenho um canal pra fazer no segundo molar inferior direito.  O mundo ta cada vez mais sem pé nem cabeça ou sou eu ou os dois. Não codifico os signos. Medo de parar num hospício como um personagem que criei. Sou um pouco dele. E isso aqui não é um conto, um poema, um desabafo, um vômito a la Caio Fernando Abreu ou uma espécie de diário. É uma necessidade como cagar, mijar, comer, fuder. Não há começo, meio, onde, quando, estilo, final de efeito, muito menos dor ou prazer, mas vai ter um título como quase tudo.  É isso e pronto. Faz parte. Não tem onde chegar essas palavras. Sei que tou com um tersol no olho esquerdo e ele furou e isso significa que está próximo de ficar bom. 

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