Possidônio era um mendigo que perambulava pelas ruas
adjacentes ao mercado central, era tolerado por alguns e repelido por muitos
dos feirantes que trabalhavam por ali.
O motivo era quase sempre seu estado alcóolico e sua
bebedeira constante, que dava à sua carcaça magra e suja, ares ainda mais
medonho e repulsivo. Mas Possidônio não
ligava, pra ele não importava o que eles pensavam dele, já havia de certa
forma, acostumado com a repulsa de todos e isso não o incomodava mais.
Ninguém sabia de onde ele veio, o que fizera antes na vida e
o que o levara para as ruas. Ele, da sua parte, também nunca contara sua
história pra ninguém, talvez por fazer questão de não querer saciar a
curiosidade alheia. Sua vida resumia-se a perambular pelo mercado central e
esmolar pelas adjacências, todo dinheiro arrecadado era convertido em cachaça,
comia das sobras da feira e da caridade alheia, quando lhe davam. Mas também era prestativo, alegre e se não
fosse à embriaguez constante, seria até melhor tratado pelos feirantes.
Certo dia Sr. Tobias dono de uma venda no mercado ficou meio atarefado
porque o rapaz que trabalhava com ele faltou, já estava de tardezinha e quase
todos os feirantes já haviam fechado suas bancas, mas Sr. Tobias sozinho penava
pra da conta de tudo. Foi então que
apareceu Possidônio e logo se ofereceu pra ajudar o velho feirante na sua
exaustiva tarefa de fechar o seu comércio. Ele agradeceu e aceitou a ajuda do
mendigo, depois de terem fechado toda a loja, em sinal de agradecimento, Sr.
Tobias pegou uma garrafa de ‘tiquira’ estendeu em direção a Possidônio. -“Toma, como gratificação por ter me ajudado
com a loja”.
Possidônio agradeceu, pegou a garrafa com os olhos brilhando,
destampou, deu uma golada e soltou no ar num assovio, franzindo a cara. - “Eita
que essa é da boa! obrigado seu Tobias, essa é de qualidade!”. E saiu pelas
ruas desertas do mercado central, com a garrafa de tiquira debaixo do braço,
vez por outra tirando a tampa e toando um gole.
A noite já ia alta, e agora, sozinho sentado em um canteiro
no final da Av. Magalhães de Almeida, Possidônio estava embriagado, na garrafa
ainda resistiam uns dois dedos do líquido arroxeado exalando seu cheiro
característico. O frio incomoda, Possidônio que levanta e sai a passos
trôpegos, cambaleando com a garrafa debaixo do braço em busca de um abrigo para
aquela noite gelada. Atravessa a avenida e segue rumo ao mercado, senta na
calçada, mas ao se dar conta que ela também está fria, levanta-se, olha ao
redor e em meio às imagens distorcidas, embaçadas e giratórias, consegue
divisar um possível abrigo para aquela noite.
Possidônio munido de alguns pedaços de papelão e folhas de
jornais velhos saiu em direção à Fonte das Pedras. Entrou pelo velho portão de
ferro que da entrada para o jardim arborizado que antecede a fonte, rumou mais
para o fundo, ajeitou os papéis sobre um dos bancos e deitou-se. No céu uma lua
crescente mostrava-se como um sorriso no céu sem estrelas daquela noite escura.
Já quase dormindo Possidônio ouve algo, parecia uma melodia
suave, aveludada, lhe acariciando os ouvidos... Ainda zonzo do efeito do
álcool, Possidônio abre os olhos procurando na escuridão da noite, de onde
vinha aquela voz. A melodia continuava, e Possidônio se via estranhamente
atraído por aquela voz de veludo que parecia lhe chamar. Não se conteve.
Levantou-se deixando cair de suas mãos a garrafa que se espedaçou no chão com o
baque. Seguiu inebriado por aquela doce voz, pisou descalço o chão de pedras
frias sem nem se dar conta do que fazia, a voz ecoava na noite, e Possidônio
seguia puxado por aquela estranha melodia. Seguiu pelo caminho que levava à
fonte, as grossas arvores e palmeiras que margeavam a passagem balançavam com o
vento que cortava a madrugada, Possidônio continuava, caminhava, mas não mais
em passos bêbados, apesar de lento, andava à passos firmes. Saiu do pequeno
caminho e chegou ao pátio principal, de frente para a grande fonte com suas
carrancas de pedra, brilhando à pálida luz da lua.
Possidônio, parado em frente à fonte, finalmente descobre de
onde vinha aquela voz maravilhosa que encantava seus ouvidos. Sentada à beira
da fonte, uma mulher parece banhar-se nela. Ela tem a pele branca, pálida como
os raios da lua que a envolve, os cabelos negros como a noite são grandes e
fartos e displicentemente lhe caem pelo colo, lhe cobrindo os seios nus. Ela é
linda, Possidônio nunca havia visto uma criatura tão bela quanto aquela, e sua
voz, sua voz era como o canto dos anjos, Possidônio estava encantado com aquela
visão. Então, a mulher sentada à beira da fonte lhe faz um sinal, como que
pedindo que ele se aproximasse. Possidônio não hesita, está totalmente
entregue, e segue em direção a ela, desce os degraus do pátio e continua se
aproximando, à medida que se aproxima dar-se conta que ela é mais bela ainda de
perto, ele aproximou-se dela, entregue, sem esboçar nenhuma resistência, ela o
abraçou e ele sentiu o toque de sua pele fria de encontro à dele. Súbito algo
lhe chama a atenção, de dentro da fonte de onde ele pensava que ela estava a
banhar-se, algo como um enorme rabo de peixe movimenta-se nas águas claras da
fonte, refletindo o brilho de enormes escamas reluzindo à luz da lua. Ele por
um instante sai do transe em que se encontrava e tenta se desvencilhar da
criatura, mas já era tarde demais. Preso num abraço mortal Possidônio luta em
vão. Um grito desesperado corta a madrugada, e uma coruja voa pela noite
soltando seus pios agourentos, saída de uma das árvores que enfeitam o jardim
da velha Fonte das Pedras.
No dia seguinte, um comentário é geral por toda a feira do
mercado central, Sr. Tobias chega para abrir a loja e é surpreendido pela
notícia dada pelo seu ajudante que o esperava sentado num tamborete em frente a
uma banca de farinha. - “Encontraram o corpo de Possidônio, boiando na fonte
das pedras, dizem que morreu afogado.”
Sr. Tobias deixou o ajudante abrindo a loja e correu para a
fonte para ver o que tinha acontecido. Quando chegou lá, ainda estavam tirando
o corpo de dentro d’água, puxaram-no e o colocaram no pátio, virado de peito
pra cima, o mendigo tinha uma expressão de pavor no rosto, e as mãos crispadas,
Sr. Tobias percebeu que ele segurava algo, abaixou-se e abriu com dificuldade a
mão rígida do cadáver. Ao fazê-lo percebeu que tinha algo lá, puxou com força e
levantou-se, segurou em frente aos olhos ajeitando os óculos para ver melhor.
Aquilo que tinha nas mãos era uma enorme e brilhante escama de peixe, mas nunca
vira um peixe que possuísse uma escama daquele tamanho, forma ou brilho. Pegou
a escama e colocou no bolso, logo o pátio da fonte fervilhava de curiosos,
polícia e bombeiros.
Sr. Tobias vai embora, da uma última olhada pra trás, e
murmura em voz baixa.
-“Descanse em paz, Possidônio”.
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