– Pois é, respondeu o
soldado Égido, não podendo evitar que um começo de lágrima lhe umedecesse os
olhos. Miguel, vendo aquele olhar, disse:
– Valeu a pena levar essa
surra só pra ver esse seu olhar de pena, disse Miguel.
– Você gosta que as
pessoas sintam pena de você?
– Caralho, mesmo tendo
largado o curso de psicologia – Miguel tosse e cospe mais sangue – mesmo tendo
largado a porra da psicologia, você não perdeu essa mania de analisar os outros
e essa incapacidade de se analisar a si mesmo, o que eu disse não tem nada a
ver com as pessoas, mas com você, eu quis dizer que, se você ainda é capaz de
sentir pena, é porque ainda é capaz de sentir alguma coisa boa, exatamente como
o menino gentil e cordato que eu conheci e que tanto amei, ou seja, você ainda
é capaz de amar, mas confesso que estou um pouco chocado – nova pausa para mais
tosse e mais sangue cuspido – de ver aquele que eu pateticamente cria ser o
amor da minha vida espancando seres humanos como meio de vida.
– Eu nunca espanquei
ninguém, hoje é minha primeira ronda.
– Ah, seu batismo de fogo,
então! Aposto que vão botar você pra me bater e me foder, não que você já não
tenha feito as duas coisas antes, e com ou sem o meu consentimento, mas, se hoje
eu gemer de prazer com todos, não se ofenda, você conhece minha mente
diabólica.
– Pára de brincadeira, Miguel,
isso não tem graça nenhuma.
– Se eu, que devo estar
com umas oito costelas quebradas, e tô com o nariz sangrando, cuspindo dentes,
ainda consigo fazer piada – ele pára de falar para ter uma crise de tosse, após
a qual Égido o abraça pela cabeça, o sangue de Miguel mancha o queixo
mal-barbeado do cabo, que, beijando os cabelos de Miguel, fala:
– Shhhhhh, vou tirar você
daqui, vai ficar tudo bem.
– Vai mesmo? – respondeu
Miguel enquanto empurrava suavemente o soldado para longe de si. Será, meu caro
Égido, que vai ficar tudo bem? Eu acho que não – tosse e cospe sangue – não
enquanto monstros como esses continuarem à solta, apedrejando michês a
tijoladas, violentando travestis e espancando todo o resto de nós, pior ainda
quando um de nós monta guarda e assiste tudo calado.
– Um de nós, quem,
perguntou ofendido Égido.
– Um de nós, gays, porra!
– Mas eu já te disse que –
Miguel fala a próxima frase junto com ele, mas num tom desdenhoso e jocoso –
“eu não sou gay”. Miguel depois continua:
– Por favor, não vamos
entrar nessa querela novamente, você sabe que é o que é, mesmo que, para que
você possa encontrar algum tipo bizarro de paz que eu não quero, você tenha que
dizer que não é o que é, baseando-se, para tanto, em silogismos estúpidos como “eu
só meto, e, como quem só mete não é gay, logo, não sou gay”, mas aí é que vocês
se enganam, já que a segunda premissa é falsa. Não adianta nada o cara ficar se
privando do prazer supremo de ser penetrado por outra cara, em nome de poder
deitar a cabeça no travesseiro com a consciência tranqüila por achar que,
porque ele não dá o rabo, não precisa se rotular gay, se, para ele ficar de pau
duro, basta ele dar tipo uma relada num rabo de macho, assim, sem querer, como
numa encoxada semi-involuntária num vagão lotado de metrô, isso também é ser
gay, meu amigo, não adianta nada ele casar com uma rachada, como você, ter
filhos indisciplinados, como você, assumir um emprego degradante para sustentar
essa família sacrée, como você, se no fundo, no fundo, tudo o que ele
quer é uma oportunidade de ficar, ainda como você, uma horinha que seja, entre
quatro paredes, a sós com outro garoto, mesmo que seja só fazendo o papel de
machão-que-faz-de-conta-que-nem-está-ali-e-deixa-para-a-bicha-o-trabalho-de-chupar-e-de-dar-o-cú,
ou, por outro lado, se entregando de cabeça e fazendo participativamente todas
aquelas coisas tão simples, tão gostosas e tão inomináveis que dois garotos
podem fazer a sós, entre quatro paredes, ou ao ar livre, se for o caso, como
nós naquela praia, lembra?
A lembrança daquela noite
na praia, a primeira vez deles, recaiu sobre eles na forma de um silêncio sobre
o qual pesava o ar abafado do banheiro, pelo qual se misturavam os odores
típicos de urina, suor e fezes, e, lá no final, um resto do cheiro de maconha
do baseado que Miguel havia derrubado depois de haver levado o primeiro tapa,
traiçoeiro, pelas costas, e que havia continuado a queimar no chão enquanto
Miguel era agarrado, jogado contra a parede e espancado violentamente por três
policiais militares, com seu namorado, aquele que pateticamente cria que Miguel
era o amor de sua vida, seja lá o que diabos isso queira dizer, com seu
namorado, dizíamos, fugindo por aquele basculante quebrado da janela do
banheiro. O beque havia continuado a queimar lentamente no chão até que,
cansada de esperar que alguém viesse, desse um trago e reavivasse a combustão,
a brasa acabou por extinguir-se completamente, exatamente como acontece com as
grandes paixões. Notando o beque no chão, Miguel, também no chão, se estica
para pegá-lo.
– Olha só o que os seus
amigos esqueceram.
Miguel então reacende o
baseado com o isqueiro Zippo prateado que trazia no bolso e que lhe havia sido
dado de presente por Égido, num momento perdido para sempre e que agora parecia
ter ocorrido há zilhões de anos atrás, é incrível como um objeto tão prosaico
como um isqueiro pode evocar tantas lembranças. Finalmente, Miguel disse,
enquanto se recostava na parede e soltava a fumaça do baseado:
– Pois é, meu amigo, o que eu tô querendo
dizer é que, enquanto os gays não puderem andar tranqüilamente pela rua sem o
temor de levar um anátema, um dedo apontado para si, um riso debochado na cara,
ou uma agressão física, causados pelo simples fato de o gay não foder como fode
a maioria das pessoas ditas “normais”, entre grossíssimas aspas, então, de nada
adiantarão os estatutos de união estável e quaisquer outros regimentos legais
que venham a salvaguardar os direitos divinos dos gays, que deveriam poder
usufruir deles sem trauma, nem vergonha, isto é, o direito à felação, à
luta-de-espadas, ao sessenta-e-nove, ao fio-terra, à sodomia, ao cunilingus,
esse último no caso das meninas, que cunilingus não tem nada a ver com o que os
leitores que não têm conhecimentos de latim possam estar pensando, isso aí, na
verdade, é conhecido pelo termo técnico de anilingus, ou, popularmente,
fredê-rose, enfim, o direito ao livre-exercício de práticas sexuais interditas
pelas igrejas católicas, universais, pentecostais e não-pentecostais, aos seus
rebanhos, coletivo mais que apropriado para designar essas aglomerações de
pessoas que vivem de fato como ovelhas à espera da tosquia. Enquanto um gay
ainda provocar, mesmo no mais progressista dos pais e mães, um sentimento de
frustração, de “onde foi que eu errei?”, enquanto um gay ainda tiver que
experimentar uma angústia inexprimível diante da escolha, viu, mãe, é de uma
escolha que estamos falando, esse negócio de opção sexual não existe, isso é
coisa inventada por vocês, heteros, na tentativa vã de entender o que
simplesmente não carece de explicação, como gregos inventando deuses para
explicar a beleza da chuva, como eu dizia, mãe, é de uma escolha que estamos
falando, e não uma opção, porque opções as temos duas, justamente entre as
quais pende a escolha, sair ou não do armário, enquanto esse maldito armário
ainda existir, realmente, será necessário muita filosofia, mas filosofia a
marteladas, frise-se bem, muita filosofia a marteladas para arrombar as portas
desse armário e estraçalhá-lo todo e reduzi-lo a pó, tem muita filosofia aí,
como a platônica, ou, pior ainda, a kantiana, que, não só não liberta da
caverna, como faz é prender mais ainda o gay ao armário, amolecendo a sua
vontade e anulando sua capacidade de reação, por isso é que se vê por aí essas
bichinhas de ar tímido, de pesados óculos, cheias de livros embaixo do braço,
de chinelinho de dedo, prontas para serem simplesmente deletadas da face da
terra caso um homófoba mais irado cruze seu caminho de pit-bull em punho,
tomara que essas bichinhas, ao lerem esses contos, aprendam a reagir, não tô
dizendo que vocês têm que sair por aí quebrando todo mundo com soco inglês que
nem o pirado do Luisinho, ou com extintor de incêndio, como o mais pirado ainda
do Adenílson (como verão nos contos posteriores), mas qualquer coisa é melhor
do que aceitar calado insultos e agressões.
– Você acabou de levar uma
surra e não esboçou nenhuma reação, disse o soldado, ao que Miguel respondeu
ironicamente:
– Alô-ôu?! Só sendo mestre
de capoeira, e dos bons, pra escapar de uma dessas, afinal, eram três contra
um, ou quatro contra um, na verdade, conto mesmo é como se fossem cinco contra
um, já que você ficou parado sem fazer nada, a cumplicidade também é crime.
Égido até abriu a boca
para responder, mas Miguel olhou pra ele fazendo um gesto debochado, um olhar blasé
e uma espécie cínica de gemido que, combinados, queriam dizer “nem comece!”, e
o soldado, diante da inutilidade de qualquer defesa, se calou. Durante esse
texto todo, o baseado foi queimando, rolando de uma boca a outra, pois o
soldado também era chegado em “fazer a cabeça”. Quando o beque chegou ao final,
Miguel já havia terminado de fazer seu longo discurso, e um silêncio agora
ocupava o tempo que até então havia sido preenchido com fumaça e palavras...
CONTINUA...
Um comentário:
Editor, te liga: Esse é o 2º episódio do conto Expurgo, que faz parte da série A Filosofia no Armário!
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