terça-feira, maio 5

Companheiras

Por Mariana Matilda
 
   Durante o inverno, a sala era tão úmida, tão fria, que enregelava mãos e obrigava os pés a manter um constante sapateado; a sala era quente, tão quente que parecia querer matar-nos sufocadas a qualquer momento.
   Os dias – no  inverno como no verão – se arrastavam pesados, longos, sem monotonia, pois nossa constante preocupação era inventar formas para que eles não fossem parecidos. Enchíamos com coragem e alegria todas as horas: alongamentos, crônicas faladas, conversas, cânticos, viagens. Tão estreito era o espaço que possuíamos para caminhar, e o ruído dos tamancos cortava-o, ferindo a lajedo; a saudade impressa nos olhos; as constantes evocações.
   Éramos vinte e cinco mulheres presas políticas numa sala da casa de detenção Pavilhão dos Primários, 1935, 1936, 1937, 1938. Quem já esqueceu o sombrio fascismo do estado novo com seus crimes, perseguições, assassinatos, desaparecimentos, torturas?
   De um lado e do outro da sala, enfileiradas, agarradas umas às outras, vinte e cinco camas. Quase presas ao teto alto, quatro janelas, fechadas por umas tristes e negras grades. Encostada à parede, uma grande mesa com dois bancos. Ao fundo da sala, os aparelhos sanitários. Por maior que fosse a nossa luta para mantê-los limpos e desinfetados, nunca conseguimos fugir do cheiro forte que exalavam.
   Vinte e cinco mulheres, vinte e cinco camas, vinte e cinco milhões de problemas. Havia louras, negras e morenas, algumas grisalhas; de roupas claras e trajes modestos. Datilógrafas, médicas, domésticas, advogadas, mulheres intelectuais e operárias. Algumas ficaram sempre, outras passavam dias ou meses, partiam, algumas vezes voltavam, outras nunca mais vinham.
   Havia as tristes, silenciosas e herméticas; as vibráteis, sempre propensas ao riso, aproveitando todos os momentos para não se deixar abater. Os filhos de Rosa eram nossos filhos. Sabíamos das graças e das manhãs que embalaram aquela mulher forte, arrogante, sempre atrevida, mas tão doce, tão elevada pelos "meninos". Quando Rosa falava dos meninos, ficávamos todas em silêncio. Onde andariam eles? A polícia arrancara-os daquela mãe, que negava-se a informar onde se encontravam, não admitiam que Rosa soubesse notícias da família: o marido foragido, a irmã distante. E os meninos? No silêncio das noites, ela fazia com que assistíssemos aos nascimentos, aos primeiros passos, ao primeiro sorriso, e depois o crescer rápido, a escola, os livros, idade avançando. Onde andariam eles?
O noivo de Beatriz era nosso noivo. Queríamos saber de suas notícias e desconhecidas andanças. Problemas comuns, destinos comuns. Os filhos de Antônia estavam em natal, mas onde estaria o marido de Nicinha, preso há tempos no Rio Grande do Norte?
– Aquele eu conheço muito! É um cabra da peste. Ninguém dobra ele, não.
  Nicinha alourada, de voz cantante, opunha às cenas de amargor suas palavras de energia. Contava a vida do marido com a vida de um herói.
  Pobres mulheres jogadas em uma prisão pútrida, sem o menor conforto. Maria só lembrava do seu chuveiro elétrico, Valentina ensinava-nos a literatura francesa (e como ela sabia!) e queríamos viva a força de Nise, para que nos desse lições de psicologia.
   Um dia – jamais esquecerei desse dia – fazia muito calor e havia sol. Que mormaço! Pareciam maiores as paredes da sala onde escreveramos desabafos. A vida lá fora devia estar bela, era verão, e com certeza ruas e avenidas ensolaradas viam passar mulheres de vestidos claros e leves. Na sala, aquela tarde, havia tanto calor que descansávamos nas camas, abanando-nos com pedaços de papel. Como não tínhamos espaço para andar todas ao mesmo tempo, quando umas o faziam, outras eram obrigadas a ficar sentadas ou deitadas nas camas. Jogávamos paciência, algumas, e o calor era tanto que nem tentávamos falar. Qualquer gesto, qualquer palavra ou movimento aumentaria o suor que escorria de nossos corpos cansados. Não podíamos perder a menor de nossas
energias: sobreviver era a intenção.
   Foi nessa tarde, que tenho gravada na memória, que ela entrou na Sala das Mulheres. Nunca esquecerei seu ar de espanto ou aqueles sapatos que haviam sido brancos. Manchados de terra ou sangue? Nunca me esquecerei do vestido sujo, das mãos trêmulas e dos cabelos revoltos.
   Ouvimos os passos do guarda subindo a escada; as chaves na porta das grades; depois ele entrou. Estrutura mediana, vestido estampado, olhos curiosos. Entrou em silêncio. Em silêncio a deixou ali.
   Olhou em torno, examinou a todas, envolvendo-as num olhar intenso. Sentou-se na ponta de uma cama próxima, encurvou-se, meteu os dedos por entre os cabelos.
– Quem será?
– Que mulheres são elas? – estaria se perguntando.
   Aproximamo-nos. Tínhamos sempre o cuidado de fazer o reconhecimento e o nosso próprio interrogatório: nome, motivo, lugar, etc. Muitos etc.
   Perguntamos quem era ela. Nenhuma resposta. Ninguém a conhecia: não nos conhecia. Insistimos. Coçou as pálpebras, levantou os olhos, encarou-nos de frente, parecia um animal prestes a se defender.  Nossas perguntas foram feitas em várias línguas. E ela continuava firme, estática.
– Não sabemos quem és. Somos antifascistas, somos presas políticas. Cada uma de nós tem sua história. Somos todas brasileiras.
   Uma de nós adiantou-se e disse:
– Eu sou comunista.
   Foi a esse grito que aquela mulher despertou. Agarrou-se à companheira, beijou-lhe a face e pôs-se a exclamar com grandes lágrimas descendo pelo rosto alquebrado:
– Camarada, minha camarada!
   O olhar com que agora envolvia as vinte e cinco mulheres era diferente; queria entender as palavras nas paredes, perguntava, sorria, abraçava a todas, chorava e ria. E contou. Contou em voz firme o quanto sofrera. A Polícia Especial a maltratara monstruosamente. Mostrou-nos os seios nos quais trazia marcas de dedos. Colocavam-na no alto da escada, amarrada e nua para forçá-la a declarar ou delatar, enquanto dois homens a puxavam os seios.
Falou-nos do sofrimento, da fome e da sede que a impuseram. Também sobre seus companheiros e das barbaridades sob as quais padeceram. Sempre com voz clara, precisa e serena. Seu corpo guardava vergastadas dos tantos chicotes de cada lugar. De prisão em prisão. Passando por prostitutas, ladras ou ébrias. Mais de dois meses de humilhações muitas.
– Momentos hediondos – comentava.
   Houve uma balbúrdia geral. Todas queriam dar-lhe um pedaço de pão, de doce, uma fruta. Comia sorrindo. Sua fome tinha dois meses. Seu sofrimento, tempos.
  Minutos depois voltou o guarda. Explicou que fora engano. Que sua cela seria outra. E, rindo:
– Muito pior.
  Quando partiu, deixava vinte e cinco amigas. Não lhe dissemos adeus, não tivemos um momento de fraqueza. Mas quando as grades se fecharam atrás dela, cinquenta olhos desatavam.
  A tarde tão quente de verão nunca fora tão extensa e dolorosa. Ninguém falava. Voltamos ao jogo de paciência, ao silêncio, à angústia de saber que a vida lá fora estava radiante.
   Três meses depois, ela voltou. Veio viver conosco. Todas as noites, à meia-noite, transitava pelo cômodo e vagava em pensamentos.
   Provavelmente apanhava da meia-noite às duas da manhã. Ficou-lhe uma psicose.
   Essa mulher se chamava Elise Saborovsky, a Sabo Berger, mulher de Henry Berger. O governo de Getúlio Vargas entregou-a mais tarde à Gestapo. Hitler matou-a.
   Ela foi-me uma revelação. Jamais conhecerei mulher tão culta, tão humana, tão valente. Uma mulher tão bela. Nunca a esquecerei.
   Na noite em o que ela partiu com Olga Benário para o navio que as levaria a Hitler, era inverno e tiritávamos de frio. Sofríamos ainda mais, porque havíamos aprendido a amá-la.
   Jamais esquecerei também das vinte e cinco mulheres da sala inconstante, do Pavilhão dos Primários.
   Grandes mulheres, boas companheiras.

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