Todos os dias eu acordo, e deixo dormir
os pensamentos que não se calam à noite. Eu levanto, eu tomo café, eu sinto a
brisa fria da manhã. Molho o rosto e sinto a água hidratar meu ânimo. Eu sinto os sabores, sinto cheiro... Tudo
como no tempo em que eu era eu criança acordando pra ir para a escola.
Mais um dia foi vivido e morto no
crepúsculo. Talvez amanhã eu possa respirar o mesmo ar da infância. Mas maldade
também amadurece, e nós matamos a inocência. Já não existe mais a leveza do
tempo do recreio feliz, em que era divertido ver calcinhas coloridas das saias
descuidadas. No tempo em que até a maldade era pueril. Sinto saudades de me
sentir inocente. Mas a toda hora tentar roubar a inocência que ainda existe em
mim. Eu ouvi palavras fáceis, de línguas cruas que escamam espinhos.
Eu acordo todo dia e faço da vida uma
prece silenciosa. Bastaria o meu perdão, bastaria viver minha crença. Minha penitência é ser tratado como gente
grande o tempo todo. É ver meu menino exigido ter sido ser adulto no tempo em
que eu não sabia ser. No tempo em que eu não tinha obrigação de ser. Obrigação
de ser!
Eu me dispo da minha matéria, confesso
minhas culpas. Veja, eu me desnudei, e gostaria de poder me mostrar assim sempre.
Mas certas verdades ferem o pudor, e os olhares só enxergam o sexo no corpo,
como se caíra a folha da parreira, e eu devesse me cobrir e ser expulso. Eu morro hoje, sem o veneno que bebi no
tempo eu que não tinha obrigação de ser puro. Em que não haviam instituído o
pecado para mim.
Todos os dias eu acordo, e nenhuma
sobra me segue. Eu chego a ter certeza de saber quem eu sou. Eu gosto de quem
eu me tornei. Eu caminho para a luz que eu escolhi e a sombra ficou pra trás. A
luz cria sombras e deforma a imagem real. A luz nas palavras dos sábios que
nasceram gente grande, é a treva. Os que esqueceram que foram crianças, são os infanticidas
do passado.
Meu tempo é hoje, estou nu. Vejam o
quiserem ver. Quero mostrar que tenho coração, que existe vida nova em mim, que
o ar que invade hoje meu pulmão, já não encontra nenhuma molécula da década
passada.
Veja, eu tenho olhos castanhos, que já
viram muito mais do que possam imaginar, muito mais do que eu queria ter visto.
Pernas e meus caminhos, braços e tantos abraços, e apertos de mão, face a face.
Eu ouvi ladainhas, eu ouvi misérias, eu ouvi gemidos, muitos provocados por
mim. Ouvi pedidos de socorro, eu estendi a mão, eu repeti erros históricos,
como um mantra.
Eu estou nu, venta e faz frio, mas
quero que me veja assim mesmo trêmulo. Não existe roupa, e nenhuma matéria onde
coisa alguma esteja inacessível.
Eu quero mostrar minhas marcas, tudo o
que ficou gravado em mim. Podes ver o quanto quiser, e podes preferir
desacreditar. Pode parecer uma pintura feia, um quadro muito abstrato. Gente
não se faz de forma métrica. Talvez alguns panos devam mesmo estar em preto em
branco. Eu te ofereço meus rascunhos e podes usar a tinta que quiser. Só não
posso mudar o que já foi pintado.
Não peço a ninguém que me entenda
inocente. Mas eu ainda sei sonhar. Eu acredito em gente grande, e tenho coragem
de ficar nu quando sentir que devo. Um dia pensei que minha história podia ser
escrita com tinta permanente, e tenho feito. Um dia eu pensei que tudo que
escrevi a lápis, eu poderia apagar. Mas eu seria metade páginas em branco, e
tudo escrito depois, se derramaria e viraria um borrão confuso e insustentável.
Eu ainda sei sonhar. Eu acredito no amor. Eu sempre amei, eu sempre quero.E sou
a soma de tudo que vivi. Não creio que poderia ser diferente. Não vejo porque
ter sido.
Sobre os pecados cometidos, talvez
neste momento eles me reclamem ao inferno. “Mas eu não acredito em deuses que
nunca dançaram”. Quem é o meu inquisidor? Quem é que pode fazer da minhas
confissões uma sentença, quando eu me faço livre a ponto de ficar nu?
Eu sou mais que os pensamentos vivos, e
os sepultados também. Nenhuma lembrança me que me acusa, me faz sentir indigno
de mim. Línguas inflamadas me perturbam é verdade. Mas eu me ouço muito bem.
Eu acredito que as pessoas possam ainda
acreditar. Que não estamos todos engessados no hoje. Seria duro demais. Eu
acredito, que eu possa querer ficar nu, sem sentir o medo da eminência do
apedrejamento. Eu acredito que eu não precise esvair até a última gota, pra
lavar a honra daqueles que vivem e procuram insultos em todos os tempos.
A história é um construtor, um
substrato, e o tempo das escolhas é hoje. O cimento que sofreu cura não se
adere a mais nada, mas o maciço dos escombros serve de alicerce. As grandes
obras, sempre nascem dos escombros, do cimento curado.
Eu acredito nas palavras, nas palavras
de quem amo. As palavras que tiram a roupa. O amor me despiu. Não é fácil ser
gente, ser gente racional. É que os sentimentos, eu sei, são muitos fortes.
2 comentários:
Não costuma ser fácil aliar o gente racional que se aprende a ser com os sentimentos que explodem no peito e sabe-se lá mais onde!
Belo texto...Parabéns!
Mari Rodrigues
Adorei, profundo e sensato.
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