Fonte: blog maranharte.
A noite já ia alta e escura quando Epifânio resolveu ir para casa depois de se divertir com os amigos na Rua do Comércio. Já ia meio trôpego, devido às muitas doses de aguardente que tomara enquanto jogava conversa fora em meio ao carteado. Não perdera nem ganhara, acabou pagando no jogo apenas as bebidas que tomou. Um fiapo de lua iluminava a noite, não havia mais carroças nem carruagens há esta hora, e enquanto andava pelas ruas desertas, Epifânio podia ouvir os roncos dos Barões que dormiam em seus sobradões azulejados. Seguiu pela Rua da estrela em direção à Rua da Palma, onde morava. As tochas e candeeiros que iluminavam as ruas estavam na maioria apagados, ajeitou sua casaca, arrumou o chapéu, acendeu a cigarrilha e continuou a caminhada. Epifânio não era rico, nem tinha família abastada, mas tinha ares de fidalgo, e ideias avançadas pra época. Por exemplo, achava que a capital do Maranhão deveria servir de exemplo para o resto do país e adotar a abolição dos escravos, coisa esta que lhe deixava em situação avexada com seus amigos filhos dos barões abastados e donos de terras que dispunham muito dessa mão de obra. Mas no momento um único pensamento rondava a sua cabeça, salteadores, bandidos, ladrões... A noite estava escura, os candeeiros apagados e ele estava só. De repente ficou com medo, indeciso entre se apressava o passo ou empacava de vez. Tomou coragem, tirou o chapéu, colocando-o entre as mãos e andou o mais depressa que pôde. A noite o encobria como um manto escuro e espesso. Suava, e então, súbito, algo lhe chama a atenção. Um barulho, um ruído abafado. Epifânio sente todos os seus cabelos arrepiarem e um gelo lhe subir pela espinha, empaca, fica parado, estático, apurando os ouvidos tentando adivinhar de onde veio aquilo. Sente as pernas tremerem quando resolve dar um passo a frente, mas mesmo assim continua, os olhos ziguezagueando pela rua escura a procura de algum sinal que denunciasse o autor daquele barulho.
Anda mais um quarteirão e mais uma
vez escuta o barulho, dessa vez mais perto. Vira-se sobressaltado, mas tudo que
vê é a escuridão espessa atrás de si. O coração começou a lhe pular no peito e
agora ele já andava a passos largos pela rua com a estranha sensação de estar
sendo observado. O barulho continuava, mas agora ele conseguia ouvir melhor, e
deu-se conta de que era melhor não ter escutado. O ruído era como um
resfolegar, um arfar, um ganido... Seja o que fosse aquilo não era gente.
Desesperou-se, sabia das estórias de assombração que rondava aquelas ruas de
pedra de cantaria, costumava ouvir os mais velhos contar sobre a Manguda, a
Curacanga... Tentou controlar-se, afinal era um homem feito e não uma criança
deu mais alguns passos e de novo a barulho atrás de si, não tinha dúvida, algo
o estava seguindo.
Ao perceber que o barulho o seguia,
deixou de lado todos os seus pudores, conceitos e preceitos e saiu em
desabalada carreira retinindo os sapatos pelas velhas ruas de pedra. Virava-se
constantemente para ver o que lhe seguia, mas sem nada distinguir em meio à
escuridão daquela noite sem lua. Dobrou uma esquina, no desespero em que vinha
só pensava em chegar em casa, mas ao entrar pela rua, tropeça numa pedra solta
e cai estatelando-se no chão. Com o impacto da queda, rala as pernas, mãos e
braços, rasgando as calças e a casaca – a única que tinha – e para piorar, caiu
com o rosto nas pedras da rua, quebrando-lhe um dente que rolou longe com o
baque. Então, deitado no chão, na escuridão da rua, de roupas rasgadas, ferido,
ralado e sem um dente na boca, ouve de olhos arregalados algo se aproximar
dele, escuta o ruído como o de garras raspando as pedras do chão e o mesmo
resfolegar que ouvira antes, só que mais alto, cada vez mais perto, sente o
corpo todo doer, as pernas já sem forças pra levantar, o coração pulando no
peito... Então sente um bafo quente soprar bem próximo ao seu rosto. O pavor é
tanto que Epifânio congela de medo, naquela escuridão completa ele não consegue
ver o que é, mas sente algo como pêlos roçarem em sua perna, com o corpo todo
contraído Epifânio quase não respira. Então algo úmido, gosmento e pegajoso lhe
encosta vária vezes no rosto.
Epifênio, sai do transe em que se
encontrava, senta-se, passa a mão pela cabeça do “bicho” e como se tirasse o
peso de uma montanha das costas, ri. Um riso bobo, aliviado, um riso banguela
daquele pobre estropiado ali naquela noite escura. Havia reconhecido afinal seu
misterioso perseguidor... Era Joly, seu cachorro de estimação.
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