sexta-feira, julho 27

Você


 

Sua amiga. Na verdade nossa amiga veio aqui. Aqui. Quero dizer aqui em casa e disse que você queria conversar sério comigo. Conversar sério. Como conhecia bem você (sei que é um pouco ou demais pretensioso dizer que conheço bem você ou que conheço bem alguém) tentei especular que era algo que envolvia sentimentos, emoção, lado afetivo, coração, paixões frustradas, sexo desastrado, expectativas amorosas. Acho pouco provável que sua mestruação atrasou, a camisinha estorou ou tem dores no baixo ventre. E tenho menos certeza que quer se matar porque já se matou outras vezes. No máximo espertar as mãos com um lápis pontiagudo quando está down.

Liguei pra você deitado na desarrumada cama minha e abri a janela com a ponta dos pés e você perguntou do outro lado da linha com sua voz ansiosa e expirações fortes e repentinas e consigo sentir presumir ir no seu coração batendo acelerado tun tun tun tun tun tun tun:

- O que foi!? - Nem falou “alô” como os normais.

Então falei de nossa amiga que veio aqui hoje pela manhã e disse que você queria falar comigo algo de importância, sério. Você então perguntou se eu tinha encontrado o filme que me emprestou. Não – respondi e  perguntei se era isso a coisa tão importante. - Sim. 


- Você está bem?

Então sua respiração paralisou por milhares de anos, suas palavras silenciaram por outros milhares de anos, como se você refletisse, mas não sei se refletia ou tinha aquilo na ponta da língua durante aquela parada durante por milhares de ano.

- Estou com uma saudade repentina que eu não queria ter.
- Como?
- Estou com uma saudade repentina que eu não queria ter.
- Repita?
- Estou com uma saudade repentina que eu não queria ter.

Liguei o viva voz e sua frase espalhou por todos os recantos do meu quarto. Entraram no guarda roupa. Na cama e por baixo da cama. Na pintura branca da parede. Nos livros na estante. Dentro da televisão. No piso. Tenho impressão que saiu do meu quarto se espalhando pela casa, tenho impressão também que saiu pela janela pra rua, invadiram outras casas, o bairro, a cidade, o estado, o mundo, a lua, as estrelas, deus acordou e os anjos tocaram sinos e o diabo espiou.
Entendia aquela saudade. Entendia o que significava. Disse ainda muita coisa que realmente não me lembro.  Sei que no final disse que ia escrever um conto para você. Um conto relacionado com aquela sua resposta de da pouco: com uma saudade repentina que não queria ter. Disse que tinha lido um cara. Um conto dele. Não me lembro o nome do conto. Sei que falava de um passeio numa roda gigante, chuvas,  silêncio, cabelo molhado,  eu te amo, separação sem despedida. 

E aquele conto me emocionou com há muito tempo não me emocionava algo. Chorei. Não chorei. Quase chorei. Acho que pra está emocionado não precisa chorar. É.

Você ainda estava do outro lado da linha me escutando ansiosa e sua voz reapareceu. Talvez sua voz estivesse mudado. Sua voz mudou mesmo. Sua voz falava sonhando. É isso. Sonhar em pintar telas, tecidos, costurar como suas tias, em julho seria uma artista. De sua voz saia cores, tenho certeza que coloriu todo meu quarto de amarelo, azul, vermelho, lilás, todas as cores possíveis e impossíveis e saiu colorindo a casa, as outras casas, a rua, o bairro, a cidade, o mundo, as estrelas, a ponto do nariz de deus, as asas dos anjos e o tridente do diabo.  

Um comentário:

Vanessa Carneiro disse...

To encantada com esse conto.