Ilustração Diego
Sobre o conteúdo e
a forma
Tratando-se de arte, a palavra
superação é muito delicada. Dizer que o romantismo foi uma superação do
classicismo é um tanto perigoso. Mas, antes de entrar nessa seara, nos
perguntemos o que é arte, com letra minúscula mesmo, sem grandes elucubrações.
Não coloquemos esta esfera do conhecimento humano em um grande plano,
inalcançável, transcendental, onírico. Isso traria muita margem para licenças
poéticas e, licença poética, em um universo objetivo, dá tanto trabalho quanto
erva daninha... O que é arte? Trate de achar a primeira palavra que vem à
cabeça, sei lá, sem muito refletir, sem muita filosofia, sem muita xerox de
universidade... Quando penso em arte sem muito pensar me vem a seguinte frase:
“qualquer coisa”. Arte, portanto, é “qualquer coisa”. Não deixa de ser um pouco
categórico, quanto mais se, no final deste artigo, eu não colocar “Igor
Nascimento, doutor em estudos do diabo a quatro”. No entanto, hoje em dia, no
cotidiano onde a metodologia, abstração do senso comum transformada em
método, método transformado em teoria, que, por sua vez, é transformada em
conhecimento científico que é destilado do conhecimento empírico, para se
tornar obsoleto, voltando ao senso comum para ser dali abstraído, transformado
em método e..., ser categórico pode ser uma grande virtude, uma
economia de tempo, desde que amparado, é claro, por uma boa metodologia, menos
científica e mais libertária.
Vamos à ela!
Arte
é qualquer coisa que me faz sentir qualquer coisa. Então uma agulhada pode ser
uma arte, uma vez que me faz sentir algo? Não. No entanto se leio um texto, que
nada fala sobre agulhas, e me sinto espetado, ferido, sangrando... Sim:
trata-se de algo artístico. Um conteúdo, por exemplo, o sofrimento banal de um
jovem imaturo que se apaixona perdidamente e depois se mata, nada mais
desinteressante se colocarmos assim, nessas palavras de subtítulo de jornal
sensacionalista, nesse padrão jornalístico que faz com que tudo se torne
corriqueiro, do resultado dos jogos de futebol ao assassinato do pai de
família, nesses termos nada é tocante, exceto o fato de um jovem, com um futuro
talvez brilhante, talvez não, mas com a possibilidade de sê-lo, ainda mais, que
agora, morto, não o poderá jamais saber, bem, esse jovem morreu... Todavia, se
chamarmos este jovem de Werther, se traduzirmos, através de uma prosa densa
todo seu sofrimento, os bastidores de seu drama esmiuçado em mais ou menos
duzentas páginas, se soubermos , pelo seu ponto de vista, o desenrolar
atrofiático de seu amor pela jovem Charlotte, aí sim, a notícia descartável
pelo cotidiano torna-se uma obra de arte eterna.
Qual a
diferença se o conteúdo é o mesmo? Qual é a grande tirada se a dor física de
uma agulhada é, geralmente, igual para todos? Eis aí que entra o argumento:
arte é “qualquer coisa”, mas qualquer coisa que me provoca alguma coisa não só
através do conteúdo, mas da forma de como é expressado. Um sapato sempre será
um sapato, mas nunca um sapato será apenas um sapato se pintado com toda a
subjetividade de Van Gogh. Os conteúdos sempre existiram. Eles se transformam
de uma sociedade para outra, de um tempo para outro. Eles surgem de acordo com
uma situação nova, em razão dos novos meios de comunicação, das novas armas de
destruição de massa etc. Os conteúdos existem, são concretos, a maneira de
expressá-los que vai determinar a diferença entre a manchete de um jornal
chinfrim e o título de um romance, a qualidade de um quadro pintado por um
pintor amador e por um grande pintor.
A arte nada mais é do que uma FORMA!
A
vitória da arte é a vitória da forma. Sua capacidade de falar
sobre amor durante milênios e não cair no ostracismo nada mais é do que uma
vitória da forma! A revolução de um estilo para outro, de uma
técnica para outra, são desdobramentos únicos do caráter maleável da forma que
se faz sensível ao mundo externo, às novas necessidades, aos novos meios de
produção. A forma muda tanto para falar dos mesmos conteúdos
quanto para falar dos novos. Nunca poderemos dizer que um estilo supera outro,
que o realismo seja superior ao romantismo pela sua objetividade (embora
arbitrariamente subjetiva)... O que muda é a maneira, o modo de
expressar uma coisa que caminha pelos séculos, como o amor entre duas pessoas,
ou de uma coisa que surge avassaladoramente e precisa de novos moldes para ser
expressa, como o holocausto que pariu por fórceps o Teatro do Absurdo...
Deixando bem claro o que é forma e
o que é conteúdo, passemos ao teatro!
Jovens
e velhos artistas, que bebem de Artaud, de Brecht, que sabem de Antoine, que se
apaixonam por Beckett, representam de tempos em tempos peças que falam da
miséria humana, performances com intuito de mostrar cruamente o mundo cruel em que
vivemos, representações que quebram a quarta parede, adaptações de Mário
Quintana e Paulo Leminski com o objetivo de mostrar o quanto a vida é simples
e, portanto, bela e, no entanto, complicadíssima...
Artistas
que recolhem aplausos, que voltam para casa com sua consciência de artista, de
que fizeram o seu papel de artista, que falam como a artistas, que fumam como
artistas, soltando baforadas que os separam das pessoas banais, e portanto
não-artistas, que enchem, igualmente, o nosso saco como artistas que são...
Trabalhos
que têm no plano teórico, objetivos estratosféricos, que abordam conteúdos de
natureza delicadíssima, que se impõem diante de todos como uma verdade dura que
vai ao encontro do homem embrutecido...
Senhores,
Até então, sinto muito, não falamos de
arte, falamos de conteúdo. O que acontece com uma performance que fala da
situação dos travestis, que se põe na rua com atores arrastando-se pelo chão,
na frente de um público que pouco entende o que está acontecendo, que pouco
sabe daquilo que é representado, que não tem ideia do que é, de fato, aquilo;
não é nada mais nada menos do que a vitória do conteúdo diante da forma. O que
sustenta a obra não são seus aspectos formais, já que o público nada
entenderia, ou muito pouco entenderia se não fosse informado, se não fosse
avisado que aquilo era para ele sentir alguma coisa...
Olha-se um bailarino no chão, comendo
lama,
Pensa-se: é um artista;
Supõe-se: ele quer dizer alguma;
Consulta-se o programa: Ah! É isso que
ele quer dizer!;
E depois: Legal, né? Tocante,
profundo...;
Em seguida: O que você vai fazer depois
do espetáculo? Eu? Nada...
Tais manifestações que surgem de todos
os cantos, acabam por tornar a arte em algo corriqueiro, uma abstração
desesperada que busca, de qualquer maneira, um conteúdo e se usa do abjeto, dos
dramas reais, dos elementos marginais, das obras já consagradas e do “nada que
vai para lugar nenhum” para se expor, para dizer “olha aqui, somos artistas!”,
e não fazem mais do que o mesmo processo de banalização do jornalismo
sensacionalista: eles (contemporâneos convictos,
pós-contemporâneos fanáticos, que são contra ao naturalismo fervoroso e ao
realismo dogmático) banalizam o transcendentalismo, fazendo com que o público,
ao ver algo diferente, olhe com indiferença e diga “Ah, olha lá, só deve ser
coisa de artista aquilo”...
E por que, às vezes, eu saio do teatro
com a impressão de não ter gostado de tal espetáculo, mas com medo de dizer que
achei uma porcaria? É por que o espetáculo é sustentado pelo conteúdo que
defende. Se eu crítico ferozmente um trabalho que visa mostrar o cotidiano das
prostitutas, corro risco de criticar a temática do trabalho, a tentativa de
expor uma realidade tão delicada. Se ataco uma peça de Beckett, posso ser tido
como alguém que desconsidera o trabalho de um prêmio Nobel. Criticando o
espetáculo, eu posso ser tratado como insensível, como desinformado, como
desumanizado, quando, na verdade, a forma com a qual o conteúdo me foi exposto
nada me fez sentir. Contrariamente, existem aqueles, ratos formados por livros
de teoria e revistas cultas, que acham maravilhoso o espetáculo que fala das
prostitutas e seu difícil cotidiano, expondo, não suas verdadeiras impressões
(o espetáculo foi uma merda, digam logo ora bolas!) mas o conteúdo de
seus pensamentos esculpidos, talhados e herméticos. Ou seja: depois de
terminado o espetáculo dos conteúdos, abre-se espaço para o conteúdo
espetacular dos intelectuais.
Na explicação do trabalho a obra é
absorvida pelo conteúdo que defende. A forma, a qualidade estética, o
ineditismo, a manipulação das ações, tudo isso fica de fora... No entanto, há
outro processo, ainda mais grave, ainda mais aterrorizador: é quando a forma
passa do rol de formato para ser conteúdo. Vemos longos debates sobre novas
técnicas, novos “teatros”, novas danças, novos elementos a serem postos em
cena. Todavia, há um esquecimento de um questionamento primordial que deve ser
feito antes de se apresentar qualquer trabalho: “o que raios quero dizer com
isto?”. Mesmo se, o que você queira dizer como artista seja "nada",
que se tenha ciência disso, como o fizeram os dadaístas, porque, quando a forma vira
o conteúdo, o mpaximo que pode acontecer é uma orgia de
masturbações concêntricas que não dizem absolutamente coisa alguma.
2 comentários:
po, igor...fiquei curioso pra assistir sua adaptação de nelson depois de ler esse texto. porq o nelson, vamos dizer, q já quer dizer algo ... talvez muitos jã vão esperando mais ou menos o que esperam...a porra de uma tragedia neurada(o conteúdo)...e agora como vai lidar com a forma (o q resta...)....é q a parada.
diego
diego.
Valeu, Igor, tu conseguiste uma proeza digna de nota: foste do nada pra algum lugar concreto. Belíssima crítica. A partir de hoje, vou esculhambar mesmo, doa a quem doer!
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