Os pais de Luisinho
ficaram chocados quando receberam uma carta da alta direção do colégio de
freiras missionárias capuchinhas onde seu filho de dezesseis anos cursava a
oitava série do antigo ginásio, dando conta de que o jovem estava “sumariamente
expulso da escola por haver atentado violentamente contra o pudor moral, em
associação pederástica com outro aluno, com quem havia sido pego mantendo
prática de sodomia nas sacrossantas catacumbas que guardam os restos mortais
das saudosas pioneiras fundadoras desta casa”. A mãe deu um pití e o pai sumiu
de casa por um mês. Porém, a família era rica, e dispunha de uísque e
barbiturícos, no caso da mãe, e carros, mulheres e cerveja, no caso do pai, o
suficiente para lidar com esse tipo de crise. Nascido de pais ricos, Luisinho
nunca soube, ou antes, nunca precisou saber o que é passar necessidade. Filho
único, ele sempre teve tudo a tempo e a hora, graças à fortuna que seu pai
construiu, sabe-se lá com que grau de licitude, como pecuarista. Porém, não
tinha nada de menino mimado, ou de enfant térrible, como era de se esperar
sendo ele filho de pais que eram mais imaturos que ele. Sempre havia sido uma
criança quieta, que vivia brincando sozinho com esquisitos jogos de tabuleiro e
livros cheios de histórias fantásticas acompanhadas de ilustrações belas e
assustadoras.
– Isso é coisa do demônio,
ladrava a mãe.
No entanto, foi só se
entender homossexual, ali por volta dos dez anos, numa experiência da qual ele
não guardaria nenhuma lembrança nítida, que Luisinho passou a ter um
comportamento violento, havendo passado a arrumar confusões na rua e na escola,
na tentativa vã de extravasar a frustração de saber que seria rejeitado e
odiado assim que abrisse a boca para revelar seu verdadeiro eu, apocalipse que
finalmente acabou acontecendo apoteoticamente da pior maneira possível, num
verdadeiro espetáculo teatral que teve como platéia uma noviça rebelde, que
logo ficaria toda molhadinha com o que veria, e que, mais tarde, à noite, após
haver dito suas orações e apagado a candeia, acabaria tocando uma gostosa
siririca com um pedaço de queijo, com as dimensões de um falo bem-dotado, que
ela guardava, embaixo da cama, especificamente para esses momentos em que a
pessoa simplesmente se cansa de ser santa. Além dela, também presenciaram o
fato um bando de criancinhas da primeira série, só que não temos condições de
avaliar aqui os danos e benefícios causados por tal visão, ou melhor, epifania,
àqueles cérebros infantis, pequenas criancinhas inocentes que acompanhavam a
jovem professorinha, a quem chamavam de tia, como toda criança pequena faz com
toda professorinha, jovem ou velha, ao que deveria haver sido, e, de fato,
acabou sendo, ainda que por razões bem outras, um emocionante e instrutivo
passeio pelas galerias subterrâneas do antigo colégio. Pois bem, essa galera
acabou mesmo foi pegando no flagra Luisinho possuindo por trás seu namoradinho
adolescente, os dois agarradinhos como dois cachorrinhos, de calças arreadas
até os tornozelos, gemendo baixinho, imitando o linguajar que haviam aprendido
em filmes pornográficos:
– Me fode gostoso, vai,
meu macho!
– Isso, toma no cú gostoso,
seu putinho...
Ah, como são bons os
namoros adolescentes, só o sabe quem já os teve, o foda é quando esquecemos de
trancar a porta, por isso, antes que eu me esqueça, regrinha báááásica,
meninos, sempre tranquem a porta, antes que vocês se esqueçam, e alguém venha e
entre de surpresa, e os aldeões acendam tochas. Continuando: diante daquele
incidente, a mãe de Luisinho, católica fervorosa, mas de um catolicismo que era
pura forma, tipo sepulcro caiado total, pois que louvava ao senhor na missa
domingueira com os mesmo lábios com que, “bibamus papaliter!”, fazia libações a
Johnnie Walker a semana toda, com esses mesmos lábios pediu a mãe de Luisinho
às irmãs que se exorcismasse o garoto, ao passo que o pai se limitou a implorar
que elas reconsiderassem a expulsão, tanto a do garoto, como a de possíveis
demônios que porventura estivessem coabitando dentro dele, só que, no fim das contas,
Luisinho acabou mesmo foi entrando para o index do colégio, pois as altezas
sereníssimas não se deixaram intimidar nem por Sila nem por Caribdes, e
expulsaram do colégio o jovem libertino, ah, não sabem quem foi Sila nem Caribdes,
então vão ler a “Odisséia”, bichas, que se um pouco de cultura é bom para o
povo hetero, entre nós, bem, entre nós produz livros como esse, para o bem ou
para o mal.
Continuando, aquele
incidente em si até foi bom para Luisinho, que se sentia como que liberto de um
fardo, perdoem a metáfora surrada, mas há metáforas que valem mais que mil
imagens, como parece ser o caso, enfim, como dizíamos, Luisinho finalmente se
sentiu livre do fardo de ter que esconder quem ele era, logo ele, que tanto
havia aprendido dos livros da infância a importância de se ser honesto, mesmo
quando seus próprios pais dão o exemplo contrário, logo ele ter que esconder
uma coisa da qual ele, de resto, não sentia vergonha alguma.
– Prefiro assim, agora
pelo menos não tenho que mentir mais pra ninguém, concluiu ele, e foi assim que
ele passou a agir desde então, se alguém lhe perguntasse se ele era gay, pois,
apesar de ser briguento e forte, Luisinho tinha sim seus baques, que não
passavam despercebidos de pessoas mais antenadas para o bem ou para o mal, e,
dentre esses, sempre há um saliente com a língua maior do que a boca, pois bem,
se alguém lhe perguntasse se ele era gay, ele dizia, na lata, se fosse mulher:
“Querida, da fruta que tu gosta, eu rôo até o caroço”; se fosse homem
interessante: “Na tua casa ou na minha?”; se fosse homem desinteressante: “Nem
entra na fila!”.
Luisinho acabou
matriculado num colégio público por sua mãe depois de haver sido expulso do
tradicional colégio de freiras missionárias capuchinhas “por prática de sodomia
durante o horário escolar na sala das pioneiras”, como havia sido escrito, nos
anais, palavra altamente sugestiva, diga-se de passagem, nos anais que
registrarão no livro da vida pelos secula seculorum o motivo daquela expulsão,
a caneta vermelha, por uma certamente piedosa e compreensiva irmã, movida por
inspiração divina e pela intenção absolutamente cristã de punir o pecador pelo
pecado que outros odeiam, mas que o pecador curte pra caralho. No entanto,
assim como há males que vêm para o bem, há bondades que vêm para o mal, pois
foi depois de haver passado a estudar no colégio público que Luisinho
despirocou de vez, no colégio católico ao menos havia um senso de disciplina,
que as irmãs procuravam aplicar com rigidez inquisitorial, mas colocar um
garoto rebelde numa escola como aquela, numa periferia perigosa e afastada, era
como soltar um pinto no lixo, por assim dizer. A mãe mesmo não tava nem aí, só
queria mesmo era se livrar:
– Você quer ser marginal,
pois vá ser marginal, sentenciava ela, que, na semântica caolha de seu idiótico
idioleto, incluía, na definição de marginal, tudo que não era normal para ela,
inclusive ser gay.
Não será surpresa nenhuma
para os leitores, diante do exposto, descobrir que Luisinho logo se meteria com
as piores peças da escola, galera de gangue e tudo, e sabe lá deus, ou talvez
nem esse, que fim ele haveria levado se não houvesse sido ele haver conhecido
Adenílson, que havia entrado no meio do ano, vindo do interior, cheio de
trejeitos femininos, três condições que, isoladamente, já seriam motivo de
perseguição implacável por parte dos alunos com propensão a comportamentos
agressivos, combinadas, então, era como se Adenílson andasse com um alvo
permanentemente desenhado em sua testa, só que o caso, ainda recente, de um
aluno novato que havia levado uma pedrada de um dos discentes de mais alta
periculosidade do colégio, havia colocado as barbas dos maus-elementos de
molho, de modo que Adenílson teve um pouco de paz em suas primeiras semanas de
novato, porém, aquilo nada mais era que a calmaria antes da tempestade, um
barril de pólvora esperando uma centelha para explodir, e a centelha maledeta
acabou sendo acesa, ainda que involuntariamente, pelo próprio Adenílson. O caso
foi o seguinte: hora do recreio, área da lanchonete. Adenílson havia acabado de
comprar uma coxinha e um refrigerante com o dinheiro que ele houvera passado a
semana toda economizando especificamente para esse fim. Sim, leitores sensíveis
às mazelas do mundo, podem sacar seus lenços, pois o pobre Adenílson só
comprava lanche na cantina da escola nas sextas-feiras, depois de haver voltado
para casa a pé durante a semana toda para economizar o dinheiro da passagem,
atravessando uma ponte de pouco mais de um quilômetro e as poucas ruas que
davam acesso a ela, distância pouca para quem está acostumado a dar “cada
pernada, siô!”, de um povoado a outro na sua cidade de interior, por ele, ele
ia e voltava a pé, mas a idéia de atravessar aquela ponte no sol quente de
meio-dia, depois de ter ingerido um mínimo necessário de calorias no almoço
gordurento, porém magro, que ele engolia na casa da tia viúva pensionista do INSS,
onde ele morava de favor enquanto não podia se sustentar sozinho, lhe tirava as
forças.
– Basta a pessoa chegar na
cidade grande pra ficar preguiçosa, era o que grunhia, lá dos cafundós do
judas, a mãe de Adenílson, que, como havíamos dito, havia acabado de comprar
uma coxinha e um refrigerante com o dinheiro que houvera economizado a semana
toda voltando a pé da escola. Aos leitores assaz judiciosos, que já devem estar
se perguntando “mas, se ele é pobre, veio do interior e mora de favor na casa
da tia viúva pensionista do INSS, de onde diabos vinha o dinheiro da passagem,
em primeiro lugar?” bem, esses leitores provavelmente não sabem o que é ser
pobre em geral no Brasil de hoje, onde a maioria das pessoas de baixa renda,
graças ao governo Lula, é exatamente isso que esse epíteto de dúbia denotação
diz, são pessoas de baixa renda, têm renda, ainda que baixa, gente que vive com
o dinheiro contadinho, e as necessidades também, numa relação diretamente
proporcional e que inclusive já deve até ter rendido tema de tese acadêmica nas
universidades da vida, isto é, da vida é maneira de dizer, falamos “nas
universidades da vida”, como quem diz “nos centros de formação acadêmica
espalhados Brasil afora”, não querendo que se entenda por aí outra coisa, como
quem diz, procurando justificar a sua falta de formação superior com uma sacada
que talvez, logo quando houvera sido inventada, haja sido perspicaz, mas que,
com o uso, se torna mesmo é patética, “eu sou formado(a) na universidade da
vida”, não me venham agora esses mesmos leitores judiciosos querer botar cabelo
em ovo, isto é, palavras na minha boca, porque eu tenho o maior carinho pelo
ambiente acadêmico, onde as pessoas têm a maior oportunidade de
blá-blá-blá-blá-blá, complete a lacuna, arme e efetue, extraia o produto.
Continuando, naquele
momento, Adenílson estava se sentindo no auge da diversão, depois de quatro
dias de muita pernada, lá vem ele caminhando alegremente pelo pátio com o
lanche na mão, procura um lugar para sentar-se e degustar, não que ele
conhecesse esta palavra, mas conhecia, de encontros efêmeros, as sensações que
ela denota, ele, dizíamos, só queria se sentar tranqüilamente sob uma sombra de
árvore ou sobre uma borda de peitoril, também à sombra, claro está, e degustar
aquele lanche que ele havia comprado com um dinheiro que ele literalmente
houvera suado para guardar, mas a ansiedade pelo sabor do refrigerante
vagabundo e da coxinha semi-velha de sexta-feira, o dia oficial das sobras da
semana, e não estamos falando só de alimentos, foi mais forte, e eis que o
esganado Adenílson dá uma ávida mordida na coxinha e, logo de imediato, uma
golada segura no refrigerante. Doses parcas de endorfina são logo disparadas em
seu organismo pelo cérebro já acostumado àquele dispêndio extra de sensação de
prazer que ele deveria prover a seu dono toda sexta-feira por volta das três e
meia da tarde, obrigação inusitada no início, mas logo executada pelo órgão
maior do sistema nervoso de Adenílson sem muita empolgação, exatamente como
acontece com toxicômanos. No entanto, essa medíocre dose de endorfina
desencadeada pelo sabor rodoviário da coxinha e pelo borbulhar excitante do
refrigerante foi suficiente para fazer Adenílson, que vinha caminhando e
comendo, tropeçar e cair em cima de um rapaz que estava sentado num banco
próximo, derramando todo o refrigerante em cima do dito rapaz, que se tratava
de ninguém menos que um dos mais violentos marginais que cumpriam sentença pedagógica
em regime semi-aberto naquele colégio público de segurança mínima, líder da
gangue à qual Luisinho, sedento de crime e sangue, havia se juntado algumas
semanas depois de haver sido matriculado ali. Para piorar ainda mais a
situação, ao tentar se levantar, o destrambelhado Adenílson acidentalmente
apoiou sua mão no caralho então adormecido, mas bastante volumoso, sob a cueca
boxer comprada na promoção na C&A e o moletom de fardamento escolar do
rapaz, que imediatamente se levantou empurrando Adenílson e chamando ele de:
– Bicha sem-vergonha, tu
quer pau? Pois eu vou te dar é um cacete, e vai ser agora.
CONTINUA...
Nenhum comentário:
Postar um comentário