sexta-feira, junho 8

O soco inglês - EPISÓDIO 1




Os pais de Luisinho ficaram chocados quando receberam uma carta da alta direção do colégio de freiras missionárias capuchinhas onde seu filho de dezesseis anos cursava a oitava série do antigo ginásio, dando conta de que o jovem estava “sumariamente expulso da escola por haver atentado violentamente contra o pudor moral, em associação pederástica com outro aluno, com quem havia sido pego mantendo prática de sodomia nas sacrossantas catacumbas que guardam os restos mortais das saudosas pioneiras fundadoras desta casa”. A mãe deu um pití e o pai sumiu de casa por um mês. Porém, a família era rica, e dispunha de uísque e barbiturícos, no caso da mãe, e carros, mulheres e cerveja, no caso do pai, o suficiente para lidar com esse tipo de crise. Nascido de pais ricos, Luisinho nunca soube, ou antes, nunca precisou saber o que é passar necessidade. Filho único, ele sempre teve tudo a tempo e a hora, graças à fortuna que seu pai construiu, sabe-se lá com que grau de licitude, como pecuarista. Porém, não tinha nada de menino mimado, ou de enfant térrible, como era de se esperar sendo ele filho de pais que eram mais imaturos que ele. Sempre havia sido uma criança quieta, que vivia brincando sozinho com esquisitos jogos de tabuleiro e livros cheios de histórias fantásticas acompanhadas de ilustrações belas e assustadoras.

– Isso é coisa do demônio, ladrava a mãe.
No entanto, foi só se entender homossexual, ali por volta dos dez anos, numa experiência da qual ele não guardaria nenhuma lembrança nítida, que Luisinho passou a ter um comportamento violento, havendo passado a arrumar confusões na rua e na escola, na tentativa vã de extravasar a frustração de saber que seria rejeitado e odiado assim que abrisse a boca para revelar seu verdadeiro eu, apocalipse que finalmente acabou acontecendo apoteoticamente da pior maneira possível, num verdadeiro espetáculo teatral que teve como platéia uma noviça rebelde, que logo ficaria toda molhadinha com o que veria, e que, mais tarde, à noite, após haver dito suas orações e apagado a candeia, acabaria tocando uma gostosa siririca com um pedaço de queijo, com as dimensões de um falo bem-dotado, que ela guardava, embaixo da cama, especificamente para esses momentos em que a pessoa simplesmente se cansa de ser santa. Além dela, também presenciaram o fato um bando de criancinhas da primeira série, só que não temos condições de avaliar aqui os danos e benefícios causados por tal visão, ou melhor, epifania, àqueles cérebros infantis, pequenas criancinhas inocentes que acompanhavam a jovem professorinha, a quem chamavam de tia, como toda criança pequena faz com toda professorinha, jovem ou velha, ao que deveria haver sido, e, de fato, acabou sendo, ainda que por razões bem outras, um emocionante e instrutivo passeio pelas galerias subterrâneas do antigo colégio. Pois bem, essa galera acabou mesmo foi pegando no flagra Luisinho possuindo por trás seu namoradinho adolescente, os dois agarradinhos como dois cachorrinhos, de calças arreadas até os tornozelos, gemendo baixinho, imitando o linguajar que haviam aprendido em filmes pornográficos:
– Me fode gostoso, vai, meu macho!
– Isso, toma no cú gostoso, seu putinho...
Ah, como são bons os namoros adolescentes, só o sabe quem já os teve, o foda é quando esquecemos de trancar a porta, por isso, antes que eu me esqueça, regrinha báááásica, meninos, sempre tranquem a porta, antes que vocês se esqueçam, e alguém venha e entre de surpresa, e os aldeões acendam tochas. Continuando: diante daquele incidente, a mãe de Luisinho, católica fervorosa, mas de um catolicismo que era pura forma, tipo sepulcro caiado total, pois que louvava ao senhor na missa domingueira com os mesmo lábios com que, “bibamus papaliter!”, fazia libações a Johnnie Walker a semana toda, com esses mesmos lábios pediu a mãe de Luisinho às irmãs que se exorcismasse o garoto, ao passo que o pai se limitou a implorar que elas reconsiderassem a expulsão, tanto a do garoto, como a de possíveis demônios que porventura estivessem coabitando dentro dele, só que, no fim das contas, Luisinho acabou mesmo foi entrando para o index do colégio, pois as altezas sereníssimas não se deixaram intimidar nem por Sila nem por Caribdes, e expulsaram do colégio o jovem libertino, ah, não sabem quem foi Sila nem Caribdes, então vão ler a “Odisséia”, bichas, que se um pouco de cultura é bom para o povo hetero, entre nós, bem, entre nós produz livros como esse, para o bem ou para o mal.
Continuando, aquele incidente em si até foi bom para Luisinho, que se sentia como que liberto de um fardo, perdoem a metáfora surrada, mas há metáforas que valem mais que mil imagens, como parece ser o caso, enfim, como dizíamos, Luisinho finalmente se sentiu livre do fardo de ter que esconder quem ele era, logo ele, que tanto havia aprendido dos livros da infância a importância de se ser honesto, mesmo quando seus próprios pais dão o exemplo contrário, logo ele ter que esconder uma coisa da qual ele, de resto, não sentia vergonha alguma.
– Prefiro assim, agora pelo menos não tenho que mentir mais pra ninguém, concluiu ele, e foi assim que ele passou a agir desde então, se alguém lhe perguntasse se ele era gay, pois, apesar de ser briguento e forte, Luisinho tinha sim seus baques, que não passavam despercebidos de pessoas mais antenadas para o bem ou para o mal, e, dentre esses, sempre há um saliente com a língua maior do que a boca, pois bem, se alguém lhe perguntasse se ele era gay, ele dizia, na lata, se fosse mulher: “Querida, da fruta que tu gosta, eu rôo até o caroço”; se fosse homem interessante: “Na tua casa ou na minha?”; se fosse homem desinteressante: “Nem entra na fila!”.
Luisinho acabou matriculado num colégio público por sua mãe depois de haver sido expulso do tradicional colégio de freiras missionárias capuchinhas “por prática de sodomia durante o horário escolar na sala das pioneiras”, como havia sido escrito, nos anais, palavra altamente sugestiva, diga-se de passagem, nos anais que registrarão no livro da vida pelos secula seculorum o motivo daquela expulsão, a caneta vermelha, por uma certamente piedosa e compreensiva irmã, movida por inspiração divina e pela intenção absolutamente cristã de punir o pecador pelo pecado que outros odeiam, mas que o pecador curte pra caralho. No entanto, assim como há males que vêm para o bem, há bondades que vêm para o mal, pois foi depois de haver passado a estudar no colégio público que Luisinho despirocou de vez, no colégio católico ao menos havia um senso de disciplina, que as irmãs procuravam aplicar com rigidez inquisitorial, mas colocar um garoto rebelde numa escola como aquela, numa periferia perigosa e afastada, era como soltar um pinto no lixo, por assim dizer. A mãe mesmo não tava nem aí, só queria mesmo era se livrar:
– Você quer ser marginal, pois vá ser marginal, sentenciava ela, que, na semântica caolha de seu idiótico idioleto, incluía, na definição de marginal, tudo que não era normal para ela, inclusive ser gay.
Não será surpresa nenhuma para os leitores, diante do exposto, descobrir que Luisinho logo se meteria com as piores peças da escola, galera de gangue e tudo, e sabe lá deus, ou talvez nem esse, que fim ele haveria levado se não houvesse sido ele haver conhecido Adenílson, que havia entrado no meio do ano, vindo do interior, cheio de trejeitos femininos, três condições que, isoladamente, já seriam motivo de perseguição implacável por parte dos alunos com propensão a comportamentos agressivos, combinadas, então, era como se Adenílson andasse com um alvo permanentemente desenhado em sua testa, só que o caso, ainda recente, de um aluno novato que havia levado uma pedrada de um dos discentes de mais alta periculosidade do colégio, havia colocado as barbas dos maus-elementos de molho, de modo que Adenílson teve um pouco de paz em suas primeiras semanas de novato, porém, aquilo nada mais era que a calmaria antes da tempestade, um barril de pólvora esperando uma centelha para explodir, e a centelha maledeta acabou sendo acesa, ainda que involuntariamente, pelo próprio Adenílson. O caso foi o seguinte: hora do recreio, área da lanchonete. Adenílson havia acabado de comprar uma coxinha e um refrigerante com o dinheiro que ele houvera passado a semana toda economizando especificamente para esse fim. Sim, leitores sensíveis às mazelas do mundo, podem sacar seus lenços, pois o pobre Adenílson só comprava lanche na cantina da escola nas sextas-feiras, depois de haver voltado para casa a pé durante a semana toda para economizar o dinheiro da passagem, atravessando uma ponte de pouco mais de um quilômetro e as poucas ruas que davam acesso a ela, distância pouca para quem está acostumado a dar “cada pernada, siô!”, de um povoado a outro na sua cidade de interior, por ele, ele ia e voltava a pé, mas a idéia de atravessar aquela ponte no sol quente de meio-dia, depois de ter ingerido um mínimo necessário de calorias no almoço gordurento, porém magro, que ele engolia na casa da tia viúva pensionista do INSS, onde ele morava de favor enquanto não podia se sustentar sozinho, lhe tirava as forças.
– Basta a pessoa chegar na cidade grande pra ficar preguiçosa, era o que grunhia, lá dos cafundós do judas, a mãe de Adenílson, que, como havíamos dito, havia acabado de comprar uma coxinha e um refrigerante com o dinheiro que houvera economizado a semana toda voltando a pé da escola. Aos leitores assaz judiciosos, que já devem estar se perguntando “mas, se ele é pobre, veio do interior e mora de favor na casa da tia viúva pensionista do INSS, de onde diabos vinha o dinheiro da passagem, em primeiro lugar?” bem, esses leitores provavelmente não sabem o que é ser pobre em geral no Brasil de hoje, onde a maioria das pessoas de baixa renda, graças ao governo Lula, é exatamente isso que esse epíteto de dúbia denotação diz, são pessoas de baixa renda, têm renda, ainda que baixa, gente que vive com o dinheiro contadinho, e as necessidades também, numa relação diretamente proporcional e que inclusive já deve até ter rendido tema de tese acadêmica nas universidades da vida, isto é, da vida é maneira de dizer, falamos “nas universidades da vida”, como quem diz “nos centros de formação acadêmica espalhados Brasil afora”, não querendo que se entenda por aí outra coisa, como quem diz, procurando justificar a sua falta de formação superior com uma sacada que talvez, logo quando houvera sido inventada, haja sido perspicaz, mas que, com o uso, se torna mesmo é patética, “eu sou formado(a) na universidade da vida”, não me venham agora esses mesmos leitores judiciosos querer botar cabelo em ovo, isto é, palavras na minha boca, porque eu tenho o maior carinho pelo ambiente acadêmico, onde as pessoas têm a maior oportunidade de blá-blá-blá-blá-blá, complete a lacuna, arme e efetue, extraia o produto.
Continuando, naquele momento, Adenílson estava se sentindo no auge da diversão, depois de quatro dias de muita pernada, lá vem ele caminhando alegremente pelo pátio com o lanche na mão, procura um lugar para sentar-se e degustar, não que ele conhecesse esta palavra, mas conhecia, de encontros efêmeros, as sensações que ela denota, ele, dizíamos, só queria se sentar tranqüilamente sob uma sombra de árvore ou sobre uma borda de peitoril, também à sombra, claro está, e degustar aquele lanche que ele havia comprado com um dinheiro que ele literalmente houvera suado para guardar, mas a ansiedade pelo sabor do refrigerante vagabundo e da coxinha semi-velha de sexta-feira, o dia oficial das sobras da semana, e não estamos falando só de alimentos, foi mais forte, e eis que o esganado Adenílson dá uma ávida mordida na coxinha e, logo de imediato, uma golada segura no refrigerante. Doses parcas de endorfina são logo disparadas em seu organismo pelo cérebro já acostumado àquele dispêndio extra de sensação de prazer que ele deveria prover a seu dono toda sexta-feira por volta das três e meia da tarde, obrigação inusitada no início, mas logo executada pelo órgão maior do sistema nervoso de Adenílson sem muita empolgação, exatamente como acontece com toxicômanos. No entanto, essa medíocre dose de endorfina desencadeada pelo sabor rodoviário da coxinha e pelo borbulhar excitante do refrigerante foi suficiente para fazer Adenílson, que vinha caminhando e comendo, tropeçar e cair em cima de um rapaz que estava sentado num banco próximo, derramando todo o refrigerante em cima do dito rapaz, que se tratava de ninguém menos que um dos mais violentos marginais que cumpriam sentença pedagógica em regime semi-aberto naquele colégio público de segurança mínima, líder da gangue à qual Luisinho, sedento de crime e sangue, havia se juntado algumas semanas depois de haver sido matriculado ali. Para piorar ainda mais a situação, ao tentar se levantar, o destrambelhado Adenílson acidentalmente apoiou sua mão no caralho então adormecido, mas bastante volumoso, sob a cueca boxer comprada na promoção na C&A e o moletom de fardamento escolar do rapaz, que imediatamente se levantou empurrando Adenílson e chamando ele de:
– Bicha sem-vergonha, tu quer pau? Pois eu vou te dar é um cacete, e vai ser agora.

CONTINUA...

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