terça-feira, maio 22

A MENTIROSA

Ela sempre falava, “eu nunca minto”, e o pior: não era mentira. Anabela só dizia a verdade. Nem mesmo a mentira mais inocente, como dizer que ia à casa de uma amiga para ir à casa do namorado, ou dizer que já almoçou, quando na verdade se empanturrou de sorvete na rua; a menina não era capaz de fazer. Os lábios tremiam, as sobrancelhas assumiam não sei qual trejeito, não adiantava. Mesmo se quisesse mentir, por algum princípio psicossomático, não conseguiria, não o saberia.
Mas quem não acreditava em todo esse papo era Rodolfo, seu até então noivo. Era ciumento, o pobre diabo. Não confiava na menina principalmente pelo fato de dizer, segundo ela, que nunca namorou, que era ainda virgem com dezenove anos em pleno século XXI. “Nem mesmo um beijo na boca?”, perguntava ele, querendo extrair alguma confissão, mas ela, certa de si, dizia sempre “não, você é o primeiro!”. Rodolfo não se conformava. Aquilo não era possível. Ela estaria com certeza o tapeando. Haveria outro, com certeza! Não era provável que Anabela, que era linda, não tivesse sido abordada em sua adolescência por nenhum rapazote, que ninguém nunca lhe roubara um beijo, nem que fosse no rosto... Ela mentia certamente para assumir diante dele uma postura de devota, para dizer que era sentimentalmente independente e para intrigá-lo, já que, uma vez a noiva tendo um comportamento tão cândido, ele, cachorro de feira, se sentiria mais canalha do que já era.
Um dia, ele explodiu:
- É mentira! Não acredito que você, durante toda a adolescência, nunca deu um beijinho, um amasso sequer num coleguinha de sala ou do terceiro ano! Duvido! você mente!
Ela respondeu, ainda com calma:
- Eu não minto, nunca beijei ninguém, só você! Juro pela alma da minha mãe!
Entre achar que Anabela era santa ou cínica, Rodolfo escolheu a segunda opção. Quem sabe mentir, mente tão bem que parece ser verdade e, há casos, Freud explica, que de tanto acreditar numa mentira a pessoa a toma como verdade, como se de fato, a situação inventada tivesse lugar na vida real... Para todos os efeitos, segundo o noivo, Anabela era uma mentirosa perfeita e, justamente por essa razão, era necessário atalhar por um caminho mais psicanalítico...
- Mas me diga, nem em pensamento? - Ele interpelou...
- Como assim? - Ela perguntou. Rodolfo concluiu a tese:
- Não se faça de sonsa... Você nunca sentiu desejo por ninguém? Nunca quis alguém sexualmente, nem em pensamentos?
- Sim! – Retrucou veementemente – Claro! Quem nunca teve?
- Eu sabia! Eu sabia!
Rodolfo saiu triunfante. Tinha pego a mentirosa com a boca na botija. É claro que ela cultiva seus desejos, desejos estes que não eram absolutamente pela triste e monótona figura do Rodolfo. Mas quem seria? O fato era que Anabela não mentia. Tinha seus desejos, seus fetiches, mas, como Rodolfo fora saber mais tarde, o desejo sexual que sua noiva nutria era por Antônio Bandeiras.
- É mentira, é mentira!! Tenho certeza que falastes esse nome para encobrir outro! És uma dissimulada, uma cínica!
Mas Anabela, que o amava muito, tratou de calá-lo com um beijo e tudo, por hora, sossegou-se, como a areia que senta no fundo da poça d’água...
Casaram-se.
Mas, mesmo assim, o então esposo, não conformado, ainda se munia das perguntas mais escabrosas, a fim de um dia descobrir a verdade, a qual ele acreditava como se fosse o próprio Evangelho. Tarefa difícil, tratando-se da moça, que não cedia de modo algum às incertas de Rodolfo. Uma vez, quando estava no bar bebendo sozinho, ou com diabo, ele pensou se a convicção da esposa não seria um estratagema, se, talvez, a insistência de Anabela em se afirmar tão pura e casta, não seria uma tentativa de mascarar um passado promíscuo, mas sim, e isso era claro como a luz do dia, que todo esse movimento de dizer-se santa era inexoravelmente uma tentativa maquiavélica de ocultar o presente!
Levantou-se da cadeira e disse:
- Ela tem um amante!
Daí então Rodolfo tornou-se mais incisivo. Um dia perguntou “Você me trai?”, ela respondeu “não”, noutro dia, se ela estivesse distraída por não importa o quê, ele perguntava “Estás apaixonada? Por quem?”, e por último, ele já convicto da traição chegou em casa tarde e soltou a pergunta “Quem é ele? Me fala! Quem é ele?”. Com certeza não era ninguém, mas não adiantava. Ele inventava de tudo, chegava a não dormir em casa somente para no dia seguinte dizer “Ele dormiu aqui, tenho certeza!”. Pode-se dizer que já não amava mais a esposa, tinha caso com o ciúme, dormia com ele, acordava com ele, alimentava-o, sustentava-o como se fosse um michê de praça...
Aconteceu que, o que era dito osmoticamente e afirmado todo santo dia, acabou sendo inculcado e, Anabela, saturadíssima, traiu o digníssimo esposo...
Com medo da reação do marido, ela não disse nada. Ocultou até onde conseguiu, já que aquela sujeira não era uma simples poeira que se joga debaixo do tapete, era um pedregulho. E a esposa adúltera, uma vez interrogada, seria impelida a falar a verdade, pois, como já dissemos, Anabela não sabia mentir.
No primeiro dia depois da traição, Rodolfo não falou palavra. Sucedeu-se outro dia, e nada. Na noite do terceiro dia, Rodolfo, antes de dormir, virou-se para mulher, que há três dias se comportava de forma muito estranha e, finalmente, perguntou:
- Você me traiu, Anabela? Diga a verdade...
Ela, sem hesitar, com olhos já cheios de água e com a cara já alfabetizada para um possível tapa, disse de uma vez:
- Sim! Sim! Sou uma desgraçada! Sou uma desgraçada! Eu te traí! Eu te traí!
Rodolfo, olhando a mulher naquele invólucro de lágrimas, fez uma cara feia, pigarreou e disse:
- Você está mentindo! Sua mentirosa!
Daí, virou-se de lado e voltou a dormir.
Anabela, por sua vez, não teve reação.

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