Ela sempre falava,
“eu nunca minto”, e o pior: não era mentira. Anabela só dizia a
verdade. Nem mesmo a mentira mais inocente, como dizer que ia à casa
de uma amiga para ir à casa do namorado, ou dizer que já almoçou,
quando na verdade se empanturrou de sorvete na rua; a menina não era
capaz de fazer. Os lábios tremiam, as sobrancelhas assumiam não sei
qual trejeito, não adiantava. Mesmo se quisesse mentir, por algum
princípio psicossomático, não conseguiria, não o saberia.
Mas quem não
acreditava em todo esse papo era Rodolfo, seu até então noivo. Era
ciumento, o pobre diabo. Não confiava na menina principalmente pelo
fato de dizer, segundo ela, que nunca namorou, que era ainda virgem
com dezenove anos em pleno século XXI. “Nem mesmo um beijo na
boca?”, perguntava ele, querendo extrair alguma confissão, mas
ela, certa de si, dizia sempre “não, você é o primeiro!”.
Rodolfo não se conformava. Aquilo não era possível. Ela estaria
com certeza o tapeando. Haveria outro, com certeza! Não era provável
que Anabela, que era linda, não tivesse sido abordada em sua
adolescência por nenhum rapazote, que ninguém nunca lhe roubara um
beijo, nem que fosse no rosto... Ela mentia certamente para assumir
diante dele uma postura de devota, para dizer que era
sentimentalmente independente e para intrigá-lo, já que, uma vez a
noiva tendo um comportamento tão cândido, ele, cachorro de feira,
se sentiria mais canalha do que já era.
Um dia, ele
explodiu:
- É mentira! Não
acredito que você, durante toda a adolescência, nunca deu um
beijinho, um amasso sequer num coleguinha de sala ou do terceiro ano!
Duvido! você mente!
Ela respondeu, ainda
com calma:
- Eu não minto,
nunca beijei ninguém, só você! Juro pela alma da minha mãe!
Entre achar que
Anabela era santa ou cínica, Rodolfo escolheu a segunda opção.
Quem sabe mentir, mente tão bem que parece ser verdade e, há casos,
Freud explica, que de tanto acreditar numa mentira a pessoa a toma
como verdade, como se de fato, a situação inventada tivesse lugar
na vida real... Para todos os efeitos, segundo o noivo, Anabela era
uma mentirosa perfeita e, justamente por essa razão, era necessário
atalhar por um caminho mais psicanalítico...
- Mas me diga, nem
em pensamento? - Ele interpelou...
- Como assim? - Ela
perguntou. Rodolfo concluiu a tese:
- Não se faça de
sonsa... Você nunca sentiu desejo por ninguém? Nunca quis alguém
sexualmente, nem em pensamentos?
- Sim! – Retrucou
veementemente – Claro! Quem nunca teve?
- Eu sabia! Eu
sabia!
Rodolfo saiu
triunfante. Tinha pego a mentirosa com a boca na botija. É claro que
ela cultiva seus desejos, desejos estes que não eram absolutamente
pela triste e monótona figura do Rodolfo. Mas quem seria? O fato era
que Anabela não mentia. Tinha seus desejos, seus fetiches, mas, como
Rodolfo fora saber mais tarde, o desejo sexual que sua noiva nutria
era por Antônio Bandeiras.
- É mentira, é
mentira!! Tenho certeza que falastes esse nome para encobrir outro!
És uma dissimulada, uma cínica!
Mas Anabela, que o
amava muito, tratou de calá-lo com um beijo e tudo, por hora,
sossegou-se, como a areia que senta no fundo da poça d’água...
Casaram-se.
Mas, mesmo assim, o
então esposo, não conformado, ainda se munia das perguntas mais
escabrosas, a fim de um dia descobrir a verdade, a qual ele
acreditava como se fosse o próprio Evangelho. Tarefa difícil,
tratando-se da moça, que não cedia de modo algum às incertas de
Rodolfo. Uma vez, quando estava no bar bebendo sozinho, ou com diabo,
ele pensou se a convicção da esposa não seria um estratagema, se,
talvez, a insistência de Anabela em se afirmar tão pura e casta,
não seria uma tentativa de mascarar um passado promíscuo, mas sim,
e isso era claro como a luz do dia, que todo esse movimento de
dizer-se santa era inexoravelmente uma tentativa maquiavélica de
ocultar o presente!
Levantou-se da
cadeira e disse:
- Ela tem um amante!
Daí então Rodolfo
tornou-se mais incisivo. Um dia perguntou “Você me trai?”, ela
respondeu “não”, noutro dia, se ela estivesse distraída por não
importa o quê, ele perguntava “Estás apaixonada? Por quem?”, e
por último, ele já convicto da traição chegou em casa tarde e
soltou a pergunta “Quem é ele? Me fala! Quem é ele?”. Com
certeza não era ninguém, mas não adiantava. Ele inventava de tudo,
chegava a não dormir em casa somente para no dia seguinte dizer “Ele
dormiu aqui, tenho certeza!”. Pode-se dizer que já não amava mais
a esposa, tinha caso com o ciúme, dormia com ele, acordava com ele,
alimentava-o, sustentava-o como se fosse um michê de praça...
Aconteceu que, o que
era dito osmoticamente e afirmado todo santo dia, acabou sendo
inculcado e, Anabela, saturadíssima, traiu o digníssimo esposo...
Com medo da reação
do marido, ela não disse nada. Ocultou até onde conseguiu, já que
aquela sujeira não era uma simples poeira que se joga debaixo do
tapete, era um pedregulho. E a esposa adúltera, uma vez interrogada,
seria impelida a falar a verdade, pois, como já dissemos, Anabela
não sabia mentir.
No primeiro dia
depois da traição, Rodolfo não falou palavra. Sucedeu-se outro
dia, e nada. Na noite do terceiro dia, Rodolfo, antes de dormir,
virou-se para mulher, que há três dias se comportava de forma muito
estranha e, finalmente, perguntou:
- Você me traiu,
Anabela? Diga a verdade...
Ela, sem hesitar,
com olhos já cheios de água e com a cara já alfabetizada para um
possível tapa, disse de uma vez:
- Sim! Sim! Sou uma
desgraçada! Sou uma desgraçada! Eu te traí! Eu te traí!
Rodolfo, olhando a
mulher naquele invólucro de lágrimas, fez uma cara feia, pigarreou
e disse:
- Você está
mentindo! Sua mentirosa!
Daí, virou-se de
lado e voltou a dormir.
Anabela, por sua
vez, não teve reação.
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