sexta-feira, maio 25

eXpurGo - Episódio 4


– E por que eu tenho que ajudar você?
– Pra se redimir de ter ficado calado enquanto surravam um amigo seu.
– Você foi muito mais que um amigo para mim.
– Isso não melhora as coisas pra você, até porque, durante todo o tempo em que estivemos juntos, você nunca me disse nada do gênero, mas eu entendo, entendo perfeitamente, você tinha vergonha de admitir que me amava, mas vamos deixar de sessão nostalgia e me dá logo esse berro.
– Não vou fazer isso, não vou deixar você acabar com a sua vida.
– Então, me ajuda a levantar e me tira daqui.
Mesmo todo quebrado, Miguel era ladino, coisa de capoeira, e, nesse movimento de se levantar, conseguiu tomar a arma do coldre do soldado, e, aplicando-lhe um rabo-de-arraia, fê-lo tombar ao chão.
– Eu bem que insisti para você fazer capoeira comigo, mas você achou que as pessoas iam “desconfiar” de nós – disse Miguel enquanto apontava a arma para Égido, ordenando logo depois, imperioso: – Vamo lá pra fora.
Lá chegando, Miguel notou a viatura, e mandou que Égido abrisse o porta-malas.
– Já que você não quer me ajudar, também não vai me atrapalhar. Vou prender você dentro do porta-malas, mas não se preocupe, vou soltar você depois que eu tiver terminado com os Outros.
– Miguel, pensa bem no que você vai fazer...
– Égido, eu já vi que tem seis balas nesse tambor, você sabe que a minha pontaria não é lá muito boa, lembra de quando atirávamos em latas e garrafas lá no sítio do vô, eu sempre errava uma ou duas, mas você acertava todas, por isso eu odiaria ter que desperdiçar uma bala com você, que me ensinou a atirar, e ainda ficar com uma bala a menos para enfrentar os Outros, abre logo essa porra desse porta-malas, caralho!
Sem poder resistir mais, acuado por uma resolução que ele sabia ser determinada, posto que conhecia Miguel e sua cabeça-dura, o soldado Égido abriu o porta-malas, e Miguel logo percebeu lá dentro a uzi isralense carregadinha de balas só esperando para se cravarem no peito de policiais bandidos. Égido nem tentou pegá-la, pois, antes que houvesse podido fazê-lo, Miguel haveria atirado nele com o trinta-e-oito. Ao vislumbrar aquela potente metralhadora, que tantas derrotas amargas evoca no imaginário militar sírio, disse Miguel:
– Laços de morte me cercaram, torrentes de impiedade me impuseram terror, cadeias infernais me cingiram, e tramas de morte me surpreenderam, mas retribuiu-me o Senhor, segundo a minha justiça, recompensou-me conforme a pureza das minhas mãos.
Égido olhou incrédulo para Miguel, que, após uma pausa, falou:
– Chegou a hora de decidir, amigo, ou você volta para o armário, opção que, nesta montagem, será simbolizada por sua entrada num porta-malas, ou você sai dele de vez e me ajuda a tirar um pouco de lixo das ruas.
– Miguel, pára com isso, vamos embora, olha, eu... eu amo você, eu vou largar minha mulher, passo a viver com você, quero ficar junto de você pra sempre, sim, foi preciso tudo isso para que eu percebesse que minha vida é uma mentira e que você é a minha única verdade, o meu único caminho, a minha única vida.
– Agora é tarde.
– Como assim?
– Porque você poderia ter feito tudo isso antes, mas não o fez porque achava que tinha muito a perder, mas agora, quando ficar do meu lado no que eu quero representa perder muito mais coisas, a sua liberdade, a sua vida, você não só se nega, como ainda por cima me vem com prêmio de consolação, que eu sei que não passa de uma mentira pra me fazer desistir, e, mesmo que fosse uma oferta sincera, você acha mesmo que eu conseguiria dormir em paz ao seu lado depois que eu vi você me assistir levar uma surra sem dar um piu?
– Então, o que você quer que eu faça?
– Pegue essa arma, veja se está carregada, engatilhe e passe ela pra mim... isso... agora pega aqui o trinta-e-oito... isso... agora, fazemos o seguinte: eu fico aqui atrás da viatura e você espera dentro do banheiro, pro caso de algum deles escapar e entrar lá.
Felizmente para o narrador e os leitores dessa triste história, eles não tiveram que esperar muito, pois logo os Outros estavam de volta, e putos de raiva porque não haviam conseguido pegar o namorado de Miguel, que, a esta altura, já estava em casa, chorando sentado, abraçando os joelhos, embaixo do chuveiro, pobre alma que vai se flagelar pela vida afora com uma culpa que não é só dela. Miguel estava escondido atrás da viatura, protegido pela escuridão da noite sem lua, metralhadora engatilhada, cigarro aceso.
– Morra de inveja, Bruce Willis! – ria-se ele consigo mesmo.

CONTINUA...

Um comentário:

Unknown disse...

Muito show Quinzinho! Quase morri de rir com esse "final": "morra de inveja, Bruce Willis!" hahahahahahaha

A série tá ficando melhor a cada novo episódio...

Parabéns!

Mari Rodrigues