Escrito no início de 2007
No meu diário de estudante
Dormi por volta de cinco horas de segunda para terça. Acordei um tanto entorpecido pelo barulho diário do despertador do celular. Minhas pernas ainda doem, levanto e não tomo banho, como de costume, e tomo meu café com excesso de leite por causa da gastrite psicossomática. Tenho uma leve discussão com minha mãe sobre meu déficit de atenção que me fez perder uma carteira de estudante universitário em via pública como narrado no boletim de ocorrência. Preciso de grana pra segunda via. E saio para o hospital sem tchau. Ela sempre me manda com ir com Deus e a Virgem Maria, mas dessa vez me mandou para o inferno. Felizmente não acredito em inferno. Não sei se caberia citar que “O inferno são os outros” a únicas palavras que sei de Sartre. Vou para a parada de ônibus com a cafeína no sangue não surtindo os efeitos esperados, pois continuo entorpecido. Entro no ônibus por volta das sete horas da manhã, como sempre fico em pé. Olhos para alguns rostos e escolhos ficar em pé ao lado de um jovem simpática, obesa, de óculos escuros. Tinha certeza que ela ia pedir minha pasta e pede.
Surge uma vaga no ônibus e corro para sentar – abro um livro sobre a morte para minha monografia - mas meu entorpecimento impede de continuar a leitura da pagina marcada feita em outras viagens. Respiro. Os olhos pra fora da janela e num turbilhão de pensamentos descubro que peguei o ônibus errado e chegarei mais atrasado. Desço pego outro ônibus. Acorda. Com outro copo de cafeína; quem sabe.
Recebo uma mensagem no meu celular de minha amiga de estágio ratificando mais ainda meu atraso e que o setor de Transplante Renal é no segundo andar no final do corredor a direita da saída do elevador.
Desço no centro e caminho e caminho até o Hospital que fica há uns 10 minutos. Agora com uma dor inédita num osso do pé direito que apesar das boas notas em anatomia, não me faz lembrar o nome.
Na porta do hospital ponho meu jaleco, meu status de senhor da vida e da morte. Que faz sempre as pessoas te verem e olhar para seu nome bordado com ar de respeito.
Sigo as instruções da mensagem e chego à porta de vidro do setor de Transplante Renal. Onde homens sentados numa espécie de cadeiras de espera: esperam alguma coisa que não sei. Pergunto a eles se tenho que entrar de máscara também e me respondem quase em coro que são pacientes transplantados e eles que devem entrar de máscaras: protocolos do setor que desconhecia. Provavelmente ganharam uns anos de vida de algum jovem que morreu sem estraçalhar os órgãos.
Entro e me dirijo a Enfermaria, onde encontro à amiga que passa breves informações sobre o Setor. Ponho uma máscara e me dirijo a um banho no leito ao seu lado. O entorpecimento e minhas pernas que doem são sobrepostas a uma angústia, aflição e nervosismo. Deparo-me com uma paciente jovem com morte cerebral apenas vivendo por um ventilador mecânico. Penso tomar um ansiolítico para atenuar a realidade e a taquicardia, mas resisto.
Inicio uma observação sobre aquele corpo, que um leigo diria estar vivo, ou melhor, em certo sentido está, pois defeca, urina e o coração bate ritmicamente; se diz em estado vegetativo. A enfermeira que coordena o banho no leito diz algumas coisas engraçadas e as outras técnicas de enfermagem sorriem. O que me deixa com um sentimento de raiva - não acho interessante o tratamento de um ‘morto’ com humorismo. Isso de fato é humor negro ¹.
O corpo nu, bonito, corado, uma jovem. Como soube depois pelo comentário de uma técnica de enfermagem era uma paciente já transplantada que após dois anos sofreu uma intensa dor de cabeça sem explicações clínicas que evoluiu a morte cerebral. Segundo os cientistas o cérebro que faz o eu, o espírito, trocando em miúdos: a pessoa. Então aquilo não era mais uma pessoa, apenas o corpo que pertenceu a essa pessoa.
Continuava viva apenas devido ao ventilador mecânico. Segunda a Lei não se pode desligar o ventilador mecânico, a não ser com o consentindo da família como explicou a Enfermeira de plantão: Uma Eutanásia Legal, ou talvez, esperar que o coração venha a parar. Reparo em um provável parente com as pupilas cheia de lágrimas ao meu lado querendo fugir daquilo tudo. Sumir, desaparecer, apagar, morrer também, talvez. Sou tão pequeno e inútil.
Saímos do leito e vamos pra enfermaria.
Minha amiga disse que sentiu vontade de pegá-la e balançá-la e gritar para acordá-la.
Admito que senti apenas vontade de desligar o ventilador mecânico e conversar com seu espírito. E eu que não acredito em inferno.
¹ Utilizei a expressão “Humor Negro”, mas sei da carga pejorativa. E não quis mudar as palavras do texto para deixá-los exatamente como escrevi.
Um comentário:
E põe tenso nisso, meu filho!
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