É bom presenciar a concepção e o produto final de um espetáculo, sobretudo, quando não foi feito para fins empresariais, ou para a conclusão de mais uma disciplina do curso de teatro, onde vemos, no primeiro, a trama obtusa do capitalismo, e no segundo, a acrobacia do conceito. Teatro, de fato, apenas a carapaça, pois quem atua mesmo são outros fatores (as velhas Xerox da universidade e as campanhas publicitárias) que estão fora do mérito da cena. Na peça O Miolo da Estória vemos que o prisma da autoria é irradiado a todo instante e que o resultado não é um processo hermético que nunca termina ou a lavagem cerebral promovia pelo Marketing, é um produto independente: uma obra de arte a ser analisada a fundo e um trabalho que merece todo apoio financeiro.
” Teatro, de fato, apenas a carapaça, pois quem atua mesmo são outros fatores (as velhas Xerox da universidade e as campanhas publicitárias) “
A linguagem utilizada pelo autor/ator, que enraíza o linguajar simples e popular, e a clareza das ideias do texto e da encenação, fazem desta peça um fragmento lírico da realidade nua e crua. Na fala do João (Lauande Aires), presenciamos o retrato do quotidiano, o trabalho duro que paga enquanto o corpo fica de pé e abandona assim que não pode mais contar com os braços do trabalhador, ao mesmo tempo, os bastidores do Bumba Meu Boi é exposto e, lá, vemos a brincadeira sendo descaradamente vendida, trocada por votos, apoiada enquanto eles podem ver, em cada brincante, um eleitor em potencial. Tais aspectos estão inseridos em um enredo simples e linear: a história de João, que quer ser um cantador, mas é o miolo do boi, peça importante para brincadeira, no entanto não visto e nem reconhecido pelos demais. O desejo de ser cantador é descartado imediatamente pelo dono da brincadeira. Frustrado, ele abre mão ser o miolo, no entanto ele fura o pé em um acidente e corre o risco de não mais trabalhar e de nunca mais poder brincar debaixo do boi.
Este é clímax da história e neste ponto habita o conflito: com o pé infeccionado, ele não tem mais de onde tirar o seu sustento, ao mesmo tempo, ele também está impossibilitado de dançar, a partir daí a figura do trabalhador explorado se encontra com a do brincante excluído e ambos fazem uma promessa para São Pedro para obter a cura.
Colocando o personagem nesta situação, o autor expõe dois olhares sob a brincadeira e o brincante: o primeiro, severo e crítico, fala sobre a sociedade, o trabalho duro e desumano, além disso, o espetáculo do auto do boi tendo que ser vendido e subordinado à políticos; o outro, fala de um aspecto esquecido e negligenciado da brincadeira, hoje em dia, tida mais como atração turística do que como algo que surge, sobretudo, da religião, do ritual, da pantomima, e não de grupos, ensaiados e coreografados, com brincantes esculpidos, às vezes, em academias.
Através da encenação, paradoxalmente, Lauande Aires mostra que o brincante não é um simples ator e que o boi não é apenas um espetáculo. A realidade está presente e tem um hálito horrível que não deve ser ignorado em função da apresentação e seus recursos plásticos. Desta forma, ao decorrer da peça, podemos perceber a todo instante este desmascaramento quando vemos os elementos típicos do bumba meu boi sendo transformados em ferramentas da construção e os instrumentos de trabalho tornando-se elementos da festa: Um tamborim, vira um prato de comida, uma colher de pedreiro, vira uma colher de sopa, a escada, funciona como uma casa, latas de tinta se transfiguram em baldes e praticantes, duas peneiras de areia, juntamente com uma pá, montam uma bicicleta. O cenário não é inerte à cena, ele faz parte do jogo, ele transcende o sentido singular e constrói a cena. O deslocamento do significado dos objetos (re)utilizados reafirmam o drama e inserem-se dentro do contexto do espetáculo.
Desta forma, a peça O Miolo da Estória que apesar do caráter fictício, poderia muito bem se chamar “O miolo da História”, pois busca uma forma de retratar a realidade por detrás daquilo que é propagandeado, os bastidores do brincante e do trabalhador, o sofrimento que não é mostrado e que não cabe nos cartões postais. O miolo do boi, da realidade, do brincante, do ajudante de pedreiro, do homem humilde e rústico, do ser humano que brinca, que crê, que chora, o miolo da sociedade que carrega baldes e mais baldes de concreto, que constrói com seu suor edifícios altíssimos, todavia, permanece nos escombros desta sociedade desigual e impiedosa. Estes pés escondidos por debaixo de um boizinho enfeitado e alegre que esconde mãos calejadas e um rosto sugado pelo cansaço, se movem, não só na brincadeira, mas no dia-a-dia dos centros urbanos: os Joãos que carregam o boizinho enfeitado, carregam também a grande cidade edificada.
Portanto, O Miolo da História surge como um espetáculo autoral e dinâmico. É claro que nada surge do nada e que, obviamente, o autor deve ter se baseado em inúmeros teóricos e pensado em tirar algum para si, no entanto, diferentemente das inúmeras montagens de Brecht e das campanhas de educação para o trânsito e diabo a quatro, conseguimos ver, apesar das influências, uma peça original, um produto único, diametralmente oposto a sensação do “mais um novo mesmo teatro”.
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