sábado, junho 11

Aurélio


Um casal judeu carregando um filho foge da atmosfera eugênica da Europa. Passaportes falsos. Fronteiras. Costa de Portugal. Um navio até Buenos Aires e de lá  o Van Dick a caminho de New York. O navio é abatido por um submarino alemão na costa do Maranhão e entre seus sobreviventes está o casal com a criança. Doado para uma cabocla maranhense e o destino dos pais talvez outro navio. Assim cresce um garoto alto  branco e loiro pelas bandas da região do Tibiri e tem vários filhos. E entre eles é Aurélio. Que logo se muda para a cidade. O bairro do João Paulo. Que pega caranguejo no manguezal do Bacanga pra comer e vende coisas na feira do João Paulo onde ouve numa radio a notícia do suicídio de Getúlio Vargas e o inesquecível silêncio que causou na multidão.  Morando numa casa na rua da cerâmica ao lado do vigésimo e quarto batalhão a qual ia servir com 18 anos e bater continência para a visita do general Castelo Branco. Dispensado do exército vai trabalhar numa loja de eletrodomésticos na rua grande de seu irmão. Frequentar a zona do baixo meretrício com seus amigos e comer misto quente com abacatada nos quiosques ao amanhecer em frente da Igreja do Carmo. Comprar seu fusca e um cordão de ouro e se apaixonar por uma secretária vinda da baixada maranhense que mora numa pensão feminina na rua  são pantaleão. Maria Helena. Piqueniques nas nascentes do rio anil, uma banho na ponta da areia, são marcos, cerveja Cerma, Cassino Maranhense, bailes carnavalescos, um jogo de dama, lança perfume no ar vários copos de uísque tragando cigarros Minister e  eu amo você ao som de Robertos Carlos. Casamento e uma casa construída no Filipinho um bar na ponta da areia, transas, filhos e um irmão querido acabado num poste bêbado na Cohab. O bar não dar certo e parte para o ramo dos pães franceses e no meio da inflação dos anos 80 e das boas madeiras de mangue da ilha ascende no mercado e expande seus negócios no Canto da fabril e Liberdade. Grana. Rio de janeiro. Ilha de Paquetá. Uma volta de bondinho. Um mergulho em Ipanema. Uma foto no cristo redentor com sua família. Filhos numa escola católica de freiras italianas. Sampaio Correia ganha o estadual e o plano real é implantado no governo FHC. Controle ferrenho da inflação e baixo consumo e salario mínimo demarcado. Os economistas dizem que o Brasil precisa de uma moeda forte e uma maior abertura para o capital estrangeiro. Vale do Rio Doce e Alumar privatizada e Macdonald feliz. Ninguém comprava pão como antes. Troca à padaria por um restaurante. Brigas e choros dentro de casa. Filhos nas escolas públicas. Sampaio Corrêa vence a terceira divisão do campeonato brasileiro  e vende-se a casa e logo depois o restaurante. Vamos embora ao jovem conjunto do Cohatrac. Abrimos uma loja de doces e salgados e o mercado não favorecia os pequenos empresários. Quebra. Vários empréstimos, atrasos de pagamento, Serasa e spc. Outra casa vendida. Compra de um sítio afastado da cidade no Jota Lima no município do Paço do Lumiar. Monta-se um lava-jato na estrada da Maioba. Metazil e muita água pra tirar sujeira de carros. Dores na região do fígado e nas articulações e vômitos estranhos.  Passa a frequentar todos os fins de semana uma praia isolada da ilha na baía do Arraial com pescadores nativos. O Guarapiranga. Uma, duas, três semanas por lá. Sururu, camarão graúdo, e uma cerveja Brahma, siri, xiri e uma rede pra dormir. Falência total. Mudança para baixada maranhense. Terra de Maria Helena. Arari. Novos vômitos dores na região do fígado e olhos amarelos. Raiva e impaciência. Estamos no corredor do Socorrão. Sete dias sem uma enfermaria com leitos. Uma correria entre poucos médicos e enfermeiros e muitos doentes. O que ele tem?  Raios-X, hemograma completo, uma tomografia computorizada e um diagnóstico: pancreatite aguda. Uma espera angustiante pra entrar na UTI também sem vagas. Depois de alguns dias conseguimos.  Deitado numa sala de ar condicionada fria e branca vendo um pequeno índio ao seu lado com meningite entubado. Papai me diz raivoso: eu quero ir pra casa. Eu quero morrer em casa. Seu último pedido. E no mesmo dia uma vela acesa se apaga. Um caixão comprado com dinheiro emprestado. Velório na cohab e o enterro no jardim da paz na cova de parentes. Fujo. Escondo-me aos prantos entre anos escondido numa privada qualquer.
...
E nesse retorno ao seu passado sei que tive um pai que teve uma estória e tenho uma mãe três irmãos continuando essa estória e levanto a cabeça e digo: a vida continua e ele está vivo, pois as emoções são eternas como diz a poeta clarice.
P.S: Me lembro quando ouvia toquinho e ficava com aqueles olhos contemplativos no sofá da sala e de nossa vibração nos jogos do sampaio e das longas conversas a caminho do guarapiranga e de um livro seu chamado republica dos becos que criança pegava e não entendia nada.
diego pires

3 comentários:

Alice Nascimento disse...

Diego,um texto tão veloz que toca rápido nossa emoção.Belíssimo!

Anônimo disse...

Pequeno, tu sintetizou a coisa gostei bastante, velocidade e emoção, a vida continua, os projetos não param, como ja te disse numa rua do Cohatrac deve ter um muleque querendo descobrir o mundo através da tua ótica, parabéns Beatnick!

Natan

Anônimo disse...

os fstos, a históris, tm cisas absurdas como a segunda guerra, mas temos que ser sinceros, graças a ela eu nasci e muitos brasileiros.

diego